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Lula é um demagogo oportunista. Suas declarações sobre o tema do aborto são um espetáculo de manipulação emocional e falácias. Como todo oportunista, reduz a complexidade do tema à simplicidade do seu delírio político. Esbraveja com dedo em riste para dizer o que sua paróquia ideológica e identitária quer ouvir.
Em recente entrevista a respeito da polêmica envolvendo o Projeto de Lei 1.904/24, Lula comparou o nascituro concebido por um estupro a um “monstro”. Há tantos absurdos nessa comparação. Eu gostaria de analisar todo o contexto do que ele disse para não me acusarem de “descontextualizar” o que foi dito; tenho caridade hermenêutica, mas não tolerância à canalhice.
“Esse negócio de ficar discutindo aborto legal. Quem está abortando, na verdade, são meninas de 12, 13, 14 anos. É crime hediondo um cidadão estuprar uma menina de 10, 12 anos, e depois querer que ela tenha um filho. Um filho de um monstro. Então é preciso de forma civilizada a gente discutir. As crianças estão sendo violentadas dentro de casa. Esse debate é um debate maduro que envolve a sociedade. Temos que respeitar as mulheres. Elas têm o direito de ter um comportamento diferente e não querer. Por que uma menina é obrigada a ter um filho de um cara que estuprou ela? Que monstro vai sair do ventre dessa menina?”
Lula é um demagogo oportunista. Suas declarações sobre o tema do aborto são um espetáculo de manipulação emocional e falácias
Vamos por partes. Lula é habilidoso com as palavras e já disse algumas vezes ser “contra o aborto”, sobretudo em época de campanha. Por isso, lerei linha por linha. Demarquei o que ele disse em negrito.
Esse negócio de ficar discutindo aborto legal. Quem está abortando, na verdade, são meninas de 12, 13, 14 anos. – Como um bom demagogo, essa afirmação é um absurdo. Lula assume que o problema do aborto é o estupro. E o estupro restrito a uma faixa etária específica. Embora seja verdade que adolescentes também abortam, a questão do aborto legal abrange muitas outras situações. E não se pode pegar casos extremos como parâmetro de todos os casos. Claro que, para testar limites, eles são interessantes. Só que isso em um debate bem demarcado pela razão. Entretanto, reduzir o debate sobre aborto legal às meninas adolescentes estupradas, além de servir como apelo retórico, esconde o fato de que mulheres de todas as idades enfrentam essa questão por inúmeras outras razões. E afirmar que matar uma pessoa de 22 semanas possa ser comparado ao homicídio não é defender estuprador.
É crime hediondo um cidadão estuprar uma menina de 10, 12 anos, e depois querer que ela tenha um filho. Um filho de um monstro. – Ninguém tem dúvidas de que o estupro é um crime abominável e deve ser tratado com a máxima seriedade e rigor. Contudo, Lula está afirmando que o nascituro é culpado pelos crimes do estuprador. Seu raciocínio desumaniza o feto ao chamá-lo de “filho de um monstro”. Ora, em nenhum mundo possível uma pessoa deve ser responsabilizada pelos atos dos progenitores. Além do determinismo moral explícito, tal linguagem transforma o nascituro em um símbolo de violência, quando, na verdade, ele também é vítima inocente. O direito à vida do feto não pode ser negado com base na conduta de terceiros. Isso é uma autoevidência para a razão.
Então é preciso de forma civilizada a gente discutir. As crianças estão sendo violentadas dentro de casa. – Chega a ser até engraçado Lula exigir civilidade do debate sobre o aborto. Falo por experiência própria que nada é mais difícil do que debater civilizadamente esse assunto com os progressistas, que são notórios pela violência discursiva.
De qualquer maneira, esta afirmação de Lula, embora verdadeira, desvia o foco do debate principal sobre o aborto para a questão da violência doméstica. Discutir civilizadamente o aborto é o contrário do apelo que ele faz aqui. A violência doméstica é um problema crucial que merece atenção. Ninguém duvida disso. Agora, utilizá-la como argumento para a discussão do aborto é instrumentalizar a violência para fins ideológicos – para ser bem preciso, trata-se de uma falácia do espantalho. São questões separadas que exigem abordagens específicas. Misturar os dois temas desvia o foco e impede soluções eficazes para ambos os problemas. Ele desvia o foco porque mobiliza a sensibilidade e atenção de sua base ideologicamente comprometida.
Esse debate é um debate maduro que envolve a sociedade. – A obviedade disso chega a ser cômica. Sem fornecer um plano concreto para um debate maduro, Lula esbraveja esta afirmação a ponto de torná-la uma platitude vazia. É necessário definir quem participa desse debate e como ele deve ser conduzido para garantir que todas as vozes sejam ouvidas e respeitadas. Ele sabe muito bem que sua base ideológica alega que só mulher deveria discutir o aborto, por causa do “lugar de fala”. Eu já demonstrei que o que essa gente chama de “debate” não passa de “programa ideológico”. Eles não querem debater nada com quem pensa diferente.
A retórica usada por Lula não só desumaniza o feto; ela perpetua um estigma contra crianças concebidas em situações de violência
Temos que respeitar as mulheres. Elas têm o direito de ter um comportamento diferente e não querer. – Sério que temos de respeitar as mulheres? O problema dessa afirmação é o seguinte: ela reduz o debate sobre aborto a uma questão de preferências individuais. E discutir o aborto não é discutir a preferência pessoal de alguém. Aborto não é um comportamento, mas uma escolha cuja consequência é a morte de um inocente. O respeito pelos direitos das mulheres deve ser equilibrado com o respeito pelo direito à vida do nascituro. Isso é o básico da discussão.
Por que uma menina é obrigada a ter um filho de um cara que estuprou ela? – Lula faz um apelo ao emocional e é legítimo que ele destaque a tragédia do estupro. No entanto, usar esse argumento para justificar o aborto geral é bem problemático. Aqui entra a falácia do apelo à piedade ou argumentum ad misericordiam. Esta é uma falácia lógica na qual a emoção da compaixão ou pena é usada para influenciar a aceitação de uma conclusão, em vez de se basear em argumentos racionais e lógicos.
Ao usar uma situação extrema e emocionalmente carregada, como a de uma menina estuprada ser forçada a ter um filho, esse argumento desvia a discussão do ponto central sobre a moralidade e legalidade do aborto em geral. Este tipo de argumento manipula os sentimentos do interlocutor e impede a consideração de soluções alternativas que poderiam apoiar tanto a vítima quanto o nascituro. Lula é mestre nesse tipo de apelo.
Que monstro vai sair do ventre dessa menina? – Lula foi longe aqui. Às vezes penso na possibilidade de ele ter se confundido com os termos. Não sei. Duvido. Um demagogo não pensa e fala o que o público quer ouvir à toa; ele o faz sob medida. O público dele concorda com isso. Esta frase revela uma visão simplista e preconceituosa, que desconsidera a dignidade intrínseca de cada ser humano, independentemente das circunstâncias de sua concepção. Não à toa a esquerda identitária odeia responsabilidades individuais. É cientificamente e moralmente incorreto presumir que uma criança nascerá com características morais negativas por causa dos atos de um progenitor. Cada indivíduo deve ser julgado por suas próprias ações e não pelo contexto de sua concepção. A retórica usada por Lula não só desumaniza o feto; ela perpetua um estigma contra crianças concebidas em situações de violência. É identitarismo puro e simples.
Pensem no contrário: Imaginem uma criança nascida de pais considerados “moralmente superiores”. Desde o nascimento, essa criança seria vista como destinada ao sucesso e à grandeza, independentemente de suas próprias escolhas ou habilidades. A premissa subjacente é a de que a herança genética determinava o valor e o caráter de uma pessoa. A eugenia foi uma teoria que defendia a melhoria da raça humana por meio da seleção de características genéticas desejáveis e a eliminação das indesejáveis. Esta ideologia foi utilizada historicamente para justificar práticas de esterilização forçada, discriminação e perseguição de pessoas consideradas “geneticamente inferiores” por serem moralmente decadentes.
A ideia de que uma criança pode herdar a maldade ou a bondade dos pais é semelhante à lógica eugênica que julgava indivíduos pela sua herança genética. Na eugenia, pessoas eram consideradas inferiores ou perigosas simplesmente por pertencerem a determinados grupos. Lula, de fato, não fala em questões de superioridade ou inferioridade racial ou étnica, mas está implícito o fato de que seu raciocínio parte da ideia de que pais moralmente monstruosos geram filhos moralmente monstruosos. Logo, pais moralmente virtuosos geram filhos moralmente virtuosos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos