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Em termos de piadas e falas descontraídas para quebrar a formalidade de certos ambientes, sou extremamente liberal. Defendo que um dos critérios mais rigorosos para saber se uma sociedade é de fato livre é quando conseguimos rir de nós mesmos em situações dramáticas. No entanto, é absolutamente vergonhoso observar o duplo padrão moral de uma parte significativa da imprensa ao lidar com declarações feitas por figuras públicas alinhadas com sua agenda ideológica. Sim, estou me referindo a Lula.
Ao comentar sobre uma pesquisa que apontou o aumento da violência contra a mulher após jogos de futebol, o presidente Lula disse que “se o cara é corintiano, tudo bem”. Em seguida, ainda disse que “lamenta profundamente” o resultado apontado pela pesquisa. Pessoalmente, entendi o gracejo. Ninguém matará por isso. Claro que o ambiente não é propício; ele está falando como presidente da República e precisa respeitar certas liturgias do cargo. Mas é o Lula, então não veremos ninguém rasgando as vestes por isso. A imprensa? Como sabemos, ficará caladinha, como se Lula tivesse declamado um soneto de amor e fidelidade.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, a informalidade brasileira facilita a criação do ambiente de favoritismo e nepotismo, em vez de um comportamento baseado em princípios universais e impessoais de justiça e igualdade
Convenhamos que esse tipo de gracinha faz parte do jeitão brasileiro, bem descrito pela ideia do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. A propósito, isso revela um dos mais complicados problemas do perfil público do brasileiro. A ideia pode parecer até já bem gasta, mas Sérgio Buarque procurou descrever, com seu "homem cordial", como o brasileiro age mais movido pelas emoções e espontaneidade do que por formalidades.
Cordial vem do latim cordialis, que significa “relativo ao coração”. Assim, não se trata de cordialidade no sentido de virtude cívica. Cordialidade, no contexto mais comum, refere-se ao comportamento amável, educado e respeitoso nas interações sociais. É a prática de tratar os outros com gentileza, consideração e empatia. No significado popular, homem cordial seria aquele capaz de demonstrar boas maneiras e uma atitude amistosa. No entanto, no contexto específico de Raízes do Brasil, a “cordialidade” assume outro significado.
Sérgio Buarque utiliza o termo “homem cordial” para descrever um traço característico da cultura brasileira. O comportamento regido por emoções e relações pessoais, onde há uma forte tendência a valorizar os laços afetivos e informais, em detrimento das normas e formalidades públicas. Precisamente nesse contexto, a “cordialidade” implica na confusão entre o público e o privado, onde as relações pessoais e familiares invadem as esferas formais e institucionais. Sabe o porteiro que acredita ser o dono do prédio por ser um primo de segundo grau do tio da cunhada da síndica? Pois é, agora imaginem quando o porteiro, primo do tio da cunhada da síndica, vira o presidente da República.
Segundo Sérgio Buarque, a informalidade brasileira facilita a criação do ambiente de favoritismo e nepotismo, em vez de um comportamento baseado em princípios universais e impessoais de justiça e igualdade. Ou seja, em resumo, podemos dizer que Lula é um clássico exemplo de déspota cordial.
Pois é assim, na informalidade e com a simpatia de um “bom amigo”, que o presidente desarma tensões diplomáticas. Está errado? Não sei, só sei que aqui entra o duplo padrão moral da imprensa. E, antes que me acusem de descontextualizar o presidente, cito-o na íntegra:
“Hoje, eu fiquei sabendo de uma notícia triste, eu fiquei sabendo que tem pesquisa, Haddad, que mostra que depois de jogo de futebol aumenta a violência contra a mulher. Inacreditável. Se o cara é corintiano, tudo bem, como eu. Mas eu não fico nervoso quando perco, eu lamento profundamente. Então, eu queria dar os parabéns às mulheres que estão aqui.”
Se fosse Leo Lins dizendo, em um de seus shows de comédia, exatamente a mesma coisa que Lula disse, tentem imaginar a reação da “internet”
Onde está a imprensa rasgando as vestes? Explico o que esse silêncio nos ensina. Por “duplo padrão moral” a gente tem de entender algo muito simples: é a aplicação de critérios ou julgamentos diferentes para situações ou pessoas similares, dependendo de quem está sendo julgado. Em outras palavras, é a prática de julgar e tratar duas situações ou indivíduos de maneiras diferentes, apesar de as circunstâncias serem essencialmente as mesmas.
Por exemplo, se fosse Leo Lins dizendo exatamente a mesma coisa em um de seus shows de comédia, tentem imaginar a reação da “internet”. O texto padrão seria o seguinte: “A fala é o reflexo de uma cultura que ainda não leva a sério a gravidade da violência contra a mulher. Embora ele tenha expressado seu pesar pelo aumento da violência, a brincadeira com a torcida corintiana banaliza a violência. Lins é perigoso, um misógino repulsivo que deve ser destruído pelo bem da democracia”.