É claro que Lula meteria o bedelho onde não foi chamado e, como presidente da República, deveria se limitar às liturgias do cargo. Nessa hora, não tem ministro da suprema corte defendendo os interesses do país. Infelizmente, vou parecer repetitivo com relação ao último texto, mas não tem jeito. Estamos vivendo um único problema: a despolitização da democracia.
Em recente entrevista, nosso presidente da República demonstrou algumas preocupações sobre a vitória de Trump. São preocupações típicas de um populista progressista que tenta associar o ressurgimento de conservadores ao discurso de ódio e ao renascimento de fenômenos como o nazismo. Lula não inventou a roda. Nem pode ser chamado de retórico habilidoso e criativo, pois repete a gramática dos populistas. Tomado pelo amor democrático, ele disse:
“Agora temos o ódio destilado todo santo dia, as mentiras, não apenas nos EUA, na Europa, na América Latina, vários países do mundo. É o fascismo e o nazismo voltando a funcionar com outra cara. Como sou amante da democracia, acho a coisa mais sagrada que nós humanos conseguimos construir para bem governar o nosso país, obviamente estou torcendo para Kamala ganhar as eleições.”
O fundamento da democracia é exercido no reconhecimento do outro como agente político, alguém que deve ser compreendido não como inimigo mortal, mas como interlocutor
Obviamente, essas preocupações são infundadas e absurdas. Mas o que mais me preocupa mesmo é como elas refletem uma escalada que naturaliza a demonização de adversários. Quando isso vem de um presidente da República, precisamos ficar um pouco mais atentos. Não é fala de um mero influenciador digital ou um intelectual engajado com suas convicções ideológicas.
O fato é que a declaração de Lula, além de ser um profundo desrespeito às vítimas dessas tiranias, demoniza seus adversários políticos na mesma proporção que sacraliza a própria posição. É a mais pura expressão do pensamento mítico. Paradoxalmente, o amante da democracia adota uma estratégia que ecoa táticas utilizadas pelos próprios regimes totalitários.
A equiparação direta dos regimes de Hitler e Mussolini ao atual crescimento da direita tem um apelo retórico na medida em que conquista bajuladores e fala apenas para o próprio cercadinho ideológico.
O fascismo e o nazismo foram sistemas organizados segundo o aparato estatal violento, com a criação de uma máquina burocrática que facilitava o controle absoluto da sociedade e a eliminação sistemática de grupos considerados indesejáveis. Mas, para chegarem lá, eles primeiro conquistaram corações e destruíram a própria linguagem política. Ou seja, despolitizaram a política para se tornaram porta-vozes de verdades absolutas sobre si mesmos. Noutros termos, sacralizaram a própria imagem de líderes benfeitores.
No caso do nazismo, isso resultou no extermínio sistemático de milhões de pessoas. Alfred Rosenberg, um dos principais ideólogos do nazismo, desempenhou um papel crucial na elaboração da doutrina racial que justificou o Holocausto. Ele propagou a ideia de que os arianos eram uma raça superior destinada a liderar o mundo, enquanto os judeus e outros grupos eram considerados uma ameaça existencial à pureza e à sobrevivência do povo alemão. A visão de Rosenberg combinava pseudociência racial, misticismo nórdico e uma interpretação distorcida da história, que visava construir uma narrativa de luta épica entre o bem e o mal. É uma narrativa messiânica apocalíptica.
Já a propaganda de Joseph Goebbels no regime nazista foi um exemplo claro da aplicação do conceito de “guerra total”, no qual todos os recursos do Estado e da sociedade são mobilizados para destruir o inimigo. A “guerra total” não se restringia ao campo de batalha, obviamente; ela permeava todos os aspectos da vida civil, tanto pública quanto privada, e transformava a propaganda em uma arma decisiva para controlar as narrativas e justificar as ações mais brutais. Goebbels utilizava todos os meios disponíveis para transformar o adversário em inimigo absoluto, desumanizando-o e legitimando a violência extrema. Ou seja, o fundamento da mentalidade totalitária é, justamente, a demonização do outro.
Por isso, “sacralizar” a democracia se torna um problema na medida em que ela é despolitizada. A democracia não é uma construção sagrada, mas um processo falível e em constante construção, que necessita de melhorias contínuas, debates e confrontos, e de uma compreensão dos mecanismos que visam coibi-la. E o que mais pode coibir a democracia é sua despolitização. O fundamento da democracia é exercido no reconhecimento do outro como agente político, isto é, trata-se de um processo de politização do outro como alguém que deve ser compreendido não como inimigo mortal, mas como interlocutor. Tanto a demonização do adversário quanto a sacralização de uma causa servem para reforçar a ideia de uma luta épica e inevitável entre o bem e o mal. Noutras palavras, destruir a democracia e adversários.
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