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Edvard Munch - Melankoli/Reprodução
Edvard Munch - Melankoli/Reprodução| Foto:

Eu tinha uns 17 anos quando cheguei à conclusão de que essa coisa de transformar o mundo era uma tremenda bobagem. Na primavera da minha vida, conclui que os políticos têm apenas prometido transformar o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é interpretá-lo. Impõe-se a pergunta: qual é a forma correta de interpretar o mundo diante de tantas perspectivas possíveis? Consequentemente, surge o problema da verdade. O que é a verdade? Infelizmente, os niilistas transformaram essa pergunta num clichê.

Naquela época, eu não fazia a menor ideia de como resolver esse dilema com minhas próprias forças — não que agora, com 40, eu resolva; bom, pelo menos aprendi a suspeitar de toda e qualquer proposta de transformação do mundo, olhar para revolucionários e contrarrevolucionários como faces atormentadas de uma mesma medalha. O desejo de fazer tábula rasa depende de um profundo ódio contra a realidade. Além de dar preguiça, o que há em comum nas ideologias senão o apego incondicional a uma ideia fixa de mundo?

Se faz sentido falar em verdade, não faz sentido misturá-la com o poder. Quando ouvia meus amigos pregando platitudes acerca da verdadeira revolução política, só fortalecia mais o tédio e o cansaço metafísico. Verdade e política não se misturam a não ser no distante mundo como ideia. No limite, o mundo como ideia pode regular a alma individual; jamais deve justificar a estrutura burocrática e o aparelho coercitivo do Estado. Assim, busquei a sabedoria dos filósofos na medida em que desacreditei da ambição dos políticos. Estudo filosofia com o único intuito em mente: interpretar o mundo, e, por isso, prestar obediência ao imperativo moral de buscar a verdade; não o poder.

Nietzsche foi o meu “primeiro filósofo”. Em uma banca de jornal, comprei uma edição de bolso do questionável Anticristo. Chamou-me atenção a frase da capa: “O que é bom? Tudo o que eleva no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência”. Naquela época, obviamente, li, não entendi e gostei. Demorei uns bons anos para poder dizer com honestidade a mim mesmo: “entendi; discordo”. Hoje, sou católico praticante e acredito no dogma do Pecado Original. Leio Nietzsche como um bom poeta. Considero a fórmula “vontade de potência” um atraente e monumental equívoco; a proposta do eterno retorno um subterfúgio brilhante, mas infeliz. É como ser atraído por ruínas na paisagem.

De Nietzsche, guardo as boas recordações de uma época cheia de desafios pessoais, paixões não resolvidas, ressentimentos e algumas ideias decisivas: saber suportar a solidão, odiar o espírito de rebanho e desprezar ídolos — sobretudo ídolos políticos. Sem esquecer daquilo que mais me marcou em sua filosofia: o amor fati [amor ao destino], isto é, o desejo de “cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas”. Diferentemente do que se possa pensar, não se trata de resignação, conformismo ou renúncia. Pelo contrário, o amor fati diz respeito à mais corajosa das afirmações: a de saber aceitar com entusiasmo o que se é.

No Crepúsculo dos Ídolos ou como filosofar com martelo, o filósofo alemão diz o seguinte: “Para viver sozinho, é preciso ser um animal ou um deus — diz Aristóteles. Falta a terceira alternativa: é preciso ser os dois ao mesmo tempo: filósofo…”. Tudo isso me impressionou um bocado e, acima de tudo, me protegeu. Protegeu-me da perigosa crença de que problemas vitais devem ser resolvidos com promessas políticas. O terror se justifica aí. O caos continua o filho bastardo de esperanças políticas. Seja de qual natureza for, respostas vitais não estão no partido, no coletivo, nas políticas identitárias, nas minorias, no feminismo, na esquerda, na direita, na revolução, na reação, no Bolsonaro, no espírito de rebanho, na força do povo, nas elites, nas massas.

A tomada de consciência da finitude, o sentido do sofrimento, a solidão e a capacidade de não se perturbar com o silêncio não dependem dos resultados de eleições, de quem ganhará a Copa do Mundo, da greve dos caminhoneiros, dos governos corruptos. Tudo isso pode ter alguma relevância, mas uma relevância secundária. Vital é o destino, não o preço do petróleo. Resolvido ou não tudo isso, o problema continuará sendo, como indaga o poeta inglês W. H. Auden, saber lidar com “aquele barulho que vibra nos ouvidos. Lá em baixo no vale, a rufar, a rufar”.

Mesmo discordando de Nietzsche, a leitura do prefácio do Anticristo me acordou de um sono dogmático: “Deve-se estar acostumado à vida nas montanhas para enxergar abaixo de si a medíocre falação atual da política e do egoísmo das nações. É preciso ter-se tornado indiferente, nunca perguntar se a verdade é útil ou fatalidade… Uma predileção da força para as perguntas que hoje ninguém mais tem coragem de colocar; a coragem para ousar o proibido; a predestinação para o labirinto. Uma experiência de sete solidões… E a vontade para a economia em grande estilo: conservar intacta a própria força, o próprio entusiasmo, o respeito por si próprio, o amor a si próprio; a imprescindível liberdade em relação a si mesmo”.

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