Como professor de filosofia confesso que não há desconforto maior do que um aluno perguntar se no Brasil não temos filósofos. A pergunta em si é bastante reveladora. Trata-se de um fato: não ensinamos filosofia brasileira nos nossos programas de ensino. Os filósofos brasileiros são negligenciados dos currículos de todos os níveis da educação, incluindo os programas básicos de ensino de filosofia. Tanto no nível médio quanto nos programas de graduação, parece haver um completo desinteresse acadêmico, aparentemente voluntário, em não se estudar filósofos brasileiros.
Só para vocês terem uma ideia, entrei na graduação interessado em estudar Nietzsche, que eu havia conhecido na adolescência. Em contato com as influências neoplatônicas em Santo Agostinho, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre a experiência mística na filosofia de Plotino, um filósofo que viveu em Roma no século 3, cujos textos foram reunidos num clássico da literatura universal chamado Enéadas. Resumindo: na graduação não lembro de ter estudado um único filósofo brasileiro.
No mestrado, meus interesses foram todos voltados a um filósofo norte-americano chamado William James, que esteve no Brasil entre 1865 e 1866 na Expedição Thayer, organizada por Louis Agassiz. Recomendo o livro O Brasil no Olhar de William James, pela Edusp. Obviamente não estudei William James para entender o Brasil. Na época, estava mais interessado na resposta do pragmatismo americano ao idealismo e ao naturalismo com relação ao problema da consciência. James se notabilizou por sua teoria do fluxo da consciência, que influenciaria toda uma geração de filósofos e escritores do século 20, incluindo a nossa Clarice Lispector.
Um programa de filosofia basicamente começa assim: ensinamos o espanto dos gregos diante da ordem da natureza. Tales, Heráclito, Parmênides e Pitágoras. Em seguida, Platão, Aristóteles, Descartes, Espinosa, Hume e Kant. Hegel, Marx, Nietzsche e Foucault são figuras carimbadas. Todos são obrigatórios e assim deve ser. Os cursos se dedicam fundamentalmente à história da filosofia e a exegese de textos filosóficos: gregos, romanos, árabes, franceses, alemães, italianos, espanhóis, ingleses, norte-americanos... e nadinha de um brasileiro.
Uma pergunta básica: quais filósofos brasileiros estudaríamos? Fiz quatros anos de graduação em filosofia e mais dois anos de mestrado. Em seis anos frequentando assiduamente a academia, só ouvi uma professora mencionar o padre jesuíta Henrique de Lima Vaz como filósofo. E realmente trata-se de um baita filósofo. De resto, estudávamos o que o padre Vaz dizia acerca de outros filósofos, mas nunca estudamos a sua própria filosofia e nem a de qualquer outro brasileiro. Aliás, recomendo sua obra Escritos de Filosofia, em vários volumes.
Minha experiência na academia não foi isolada. E há razões históricas para entender o desprezo que os departamentos de filosofia no Brasil têm pelo desenvolvimento da própria filosofia brasileira. A resposta ao aluno que me pergunta se não temos filósofos não é negativa: há filósofos brasileiros.
Eu escrevi um texto para este jornal a respeito do primeiro volume do livro do Paulo Margutti: História da Filosofia do Brasil (Edições Loyola, 2013). O livro cobre o período colonial de 1500 a 1822. No texto, explico como o livro de Margutti nasce de uma “insatisfação com respeito ao desinteresse com o qual a filosofia brasileira é vista e tratada por uma parte significativa dos intelectuais e das instituições acadêmicas brasileiras” e como ele divide em três grandes grupos os estudiosos de filosofia no Brasil.
O pressuposto básico de Margutti na introdução de sua é “que temos de conhecer como se implantou e se desenvolveu a filosofia em nosso país para podermos estabelecer mais adequadamente nossa maneira própria de filosofar. Isso nos permitirá refletir filosoficamente a partir do Brasil”. É possível? Há uma história da filosofia do Brasil a ser contada? Sim, há e ela está sendo contada.
Com agudeza crítica, Margutti demonstra a insuficiência de empreendimentos históricos da filosofia brasileira anteriores ao seu. Há “trabalhos paradigmáticos” de João Cruz Costa, Contribuição à história das ideias no Brasil, e Antônio Paim, com o seu monumental História das ideias filosóficas no Brasil e os Estudos Complementares.
Margutti faz uma análise crítica detalhada dessas obras e de outras contribuições históricas. Os nomes mais importantes são avaliados positiva e negativamente: Sílvio Romero, com o livro A filosofia no Brasil de 1878; Leonel França, A filosofia no Brasil (1921); Luís Washington Vita, com o Panorama da filosofia no Brasil; Jorge Jaime e a sua História da filosofia no Brasil; e, por fim, analisa o texto de Lima Vaz, O pensamento filosófico no Brasil de Hoje.
Segundo a análise de Margutti, todas essas obras, por maiores que tenha sido suas contribuições históricas, têm problemas metodológicos sérios que comprometem a compreensão do desenvolvimento da história da filosofia brasileira. Portanto, é preciso superá-las. Neste mês, a Edições Loyola lança o segundo volume da História da Filosofia do Brasil. Agora tratará da “ruptura iluminista”, um período de produção filosófica brasileira que cobre 1808 a 1843. O livro, que acabei de receber da editora, tem 712 páginas! E, assim que eu terminar, prometo uma resenha.