As rivalidades nascem de uma forma muito específica de desejo. Não de instintos espontâneos ou deformação do caráter, ao contrário do que poderíamos pensar em um primeiro momento. Pois não se trata de um impulso irracional sedimentado pelo ódio, que paralisa a alma e cega a consciência. Na verdade, apelar para o ódio cego como única causa da violência seria a resposta mais fácil e preguiçosa.
As rivalidades têm fonte um pouquinho mais complexa do que o simples “não sei por que, mas eles odeiam tanto”. Além de vago, esse tipo de expressão não dá conta do recado e não explica a violência. Fora que muita gente pode usá-la para justificar atrocidades reversas. Afinal, o que não estaríamos dispostos a fazer para combater o ódio alheio, o nutriente que move nossos inimigos? A monstruosidade tem tantos disfarces e nomes bonitos.
De qualquer maneira, não estou negando o ódio. Ele existe e é distribuído de forma bem democrática entre nós. Está aqui e ali. Tem dimensões fisiológicas, geográficas e até metafísicas. Às vezes se manifesta de modo mais explícito e barulhento, noutras ocasiões se desenvolve de forma sutil e silenciosa. Ninguém está isento do seu quinhão de ódio, e que atire a primeira pedra quem nunca odiou.
No entanto, não acredito que o puro impulso de ódio seja capaz de explicar o crescimento de rivalidades nas redes sociais. O discurso de ódio, por si só, não é condição suficiente para gerar violência. Por um motivo simples: sentimentos de ódio não são privilégios dos outros e, em geral, com exceção dos psicopatas, as pessoas conseguem equilibrar bem a balança de seus instintos e medos com pequenas doses humildade e amor próprio. Faltam peças nesse quebra-cabeça.
O desejo para o qual gostaria de chamar atenção foi sistematicamente estudado pelo antropólogo francês René Girard, que o denominou de desejo mimético. Esse, na verdade, é a fonte das rivalidades, da violência e das guerras. Nossas relações, nossas redes de contato e nosso convívio funcionam como canal de contágio ou fio condutor, que catalisa a coisa.
A teoria mimética de Girard é baseada num insight simples e poderoso: na vida social, nós buscamos nos realizar a partir do que outras pessoas desejam. Não desejamos o que as pessoas têm: objetos, bens materiais, fortuna, saúde e beleza. Não é uma relação direta entre o nosso querer e a possibilidade de possuir as coisas dos outros. Há um elemento mediador que determina nossos interesses: desejamos o desejo dos outros.
Nesse “mecanismo”, imitamos os outros porque desejamos imitar os seus desejos. O desejo serve como modelo e não como mero instinto de querer possuir ou destruir coisas. É uma estrutura triangular envolvendo sujeito, modelo e objeto; e não apenas a relação direta, unilateral e espontânea entre sujeito e objeto.
Pode não parecer à primeira vista, mas o que Girard mostrou com sua teoria foi que a violência está na origem das nossas relações sociais, já que esse tipo de desejo mimético dispara uma escalada de competição e destruição. A teoria do desejo mimético aponta para o fato de que entre o sujeito e o objeto existe o desejo mediador e que, numa dinâmica sempre crescente de tensão, um ciclo de rivalidades vai se instaurando entre os indivíduos.
Como imitar é uma forma de “possuir” o modelo, de internalizá-lo e viver tal como ele, quanto mais próximos os modelos miméticos estão de nós — pelo tempo, espaço, pelas hierarquias e pelos prestígios — mais eles se tornam os nossos rivais. Girard chamou essa mediação de “mediação interna” e argumentou que esse mecanismo ativa um processo destrutivo do tecido social.
Se eu desejo não o que o meu rival tem, mas imito o seu desejo, então o meu rival se transforma em obstáculo para a realização dos meus próprios desejos, dando assim início a um ciclo de violência que Girard chamou de “contágio mimético”.
Ele sintetiza esse mecanismo com as seguintes palavras: “Criamos rivalidade na mimesis [imitação], competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos.”
Não preciso insistir no potencial dessa teoria para entender o comportamento das redes sociais. Num excelente artigo mostrando as conexões entre o empresário Peter Thiel e Girard, Geoff Shullenberger escreve o seguinte:
“As estruturas das plataformas sociais medeiam a apresentação de objetos. Isto é: todos os “objetos” que aparecem inseridos e disponibilizados para os sinais visíveis do desejo do outro (como as curtidas, retweets, comentários, etc.). O acúmulo de tais sinais, por sua vez, dá mais visibilidade ainda aos objetos: quanto mais mediado pelo desejo do outro (ou seja, quanto mais curtidas e compartilhamento etc.), mais proeminente um post ou tweet se torna no feed de alguém, o que significa que se torna mais desejável. O desejo gera desejo”.
Em outras palavras, as redes sociais não contribuíram para aumentar o discurso de ódio, mais do que isso, elas são genuínas fábricas de desejos miméticos. Portanto, um fio condutor com alto potencial para gerar rivalidades.
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