No dia 4 de novembro, um grupo de um pouco mais de cem pessoas se reuniu, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, para celebrar a memória de Carlos Marighella. Alameda Casa Branca trata-se do local onde o guerrilheiro foi morto. A esquerda ainda busca um herói combatente para chamar de seu. Talvez sonhe com um “arquipélago” para chamar de nosso. O romantismo revolucionário persiste no coração dilacerado dos que ainda sofrem pelas promessas não cumprida dos sonhos utópicos.
Para muitos, Marighella não foi só um ativista político. Foi mais do que isso, um verdadeiro humanista lutando bravamente pela democracia. Um paradigma da resistência contra a tirania. Sim, havia tirania. O que não quer dizer que Carlos é o santo padroeiro da liberdade democrática. Da minha parte, ele não passa de uma mera nota de rodapé da história recente do Brasil. Na verdade, acho bem sem-vergonha o humanismo dessa esquerda revolucionária (tão sem-vergonha quanto a cruzada apocalíptica dos reacionários). Principalmente quando transformam figuras medíocres em heróis.
É da natureza humana buscar modelos inspiradores para nossa jornada. O problema da imaginação heroica, nesse caso, são seus limites sensíveis à tentação da idolatria. O fato é que ninguém deve ser idolatrado do jeito que essa gente busca um mausóleo para consagrar em altar. Idolatrar significa elevar alguém à categoria de divino, atribuir forças sobrenaturais e sagradas a essa pessoa. Ela se torna um pequeno deus substituto. Cumpre uma função teológica bem patética. E um deus pode tudo, ou pelo menos acha que pode. Inclusive julgar, condenar e matar. Não são deuses da misericórdia e amor, portanto.
A categoria de “banditismo” não fornece a chave de compreensão adequada para a biografia de Marighella
Marighella nasceu da Virgem Maria e ressuscitou dos mortos? Não. Então é só humano, com todos os defeitos morais; com todas as misérias e vícios; com todos os pecados. Um sujeitinho insuficiente como qualquer outro. Algumas virtudes? Deve ter. Não me interesso. Só sei que idolatrá-lo como um grande humanista é coisa de lunático. Eu queria enviar um exemplar do Arquipélago do Soljenítsin para cada uma dessas pessoas que ainda acredita no mito do fim da história da sociedade sem classes.
Numa cultura carente de heróis, as pessoas começam a acreditar em qualquer coisa, inclusive que Marighella foi um... herói. São novos mitos. São mitos políticos. Não há nada mais perigoso do que essas religiões políticas que inundaram o século 20 de sangue em nome de uma sociedade sem classes, em nome do novo homem, do progresso, da nova sociedade. Parafraseando Adorno, como, depois de Gulag, é possível poesia?
Como disse um amigo, a atual esquerda e direita lutando por narrativas são irmãs siamesas. Historicamente, é possível pensar a política como relação amigo-inimigo. De fato, alguns tratam isso como “realismo”. Ao contrário dos idealistas e dos utópicos que pensam o mundo a partir de uma unidade substancial reguladora, os realistas pensam a política a partir do conflito. Até aí tudo bem. Realistas se interessam pela dinâmica do “poder” muito mais do que pela fundamentação meta-histórica da “unidade da cidade”.
Entretanto, os problemas começam quando uma das partes universaliza o valor moral do "nós, os amigos" e faz de tudo para demonizar o que vem "deles, os inimigos". Aqui já não estamos mais no âmbito da política, mas no da “religião política”, que pode ser resumida por duas palavras: nostalgia e substituição.
Especificamente com relação ao marxismo, George Steiner resume nostalgia e substituição da seguinte maneira: “o marxismo possui lendas e iconografia, ou seja, retratos oficiais de Lenin e toda história da vida deste na forma de milhões de contos, óperas e filmes. O marxismo possui vocabulário próprio. O marxismo possui emblemas e gestos simbólicos, como qualquer fé religiosa transcendente: ‘quero uma total entrega da tua parte. Quero que me confies totalmente a tua consciência e a tua pessoa’. Em troca disso, como qualquer grande teologia, oferece-nos uma explicação completa do papel do homem na realidade biológica e social. Acima de tudo, oferece-nos um contrato de esperança messiânica com o futuro”.
Não, definitivamente Marighella não deve ser considerado herói. Também não deve ser reduzido a bandido ou criminoso comum. Porque não é assim tão simples. A categoria de “banditismo” não fornece a chave de compreensão adequada para a biografia de Marighella. Não se trata de um criminoso comum que cometeu homicídios. Suas causas e seus meios precisam ser devidamente investigados. Por isso, erram aqueles que dizem “um mero bandido. Um terrorista”. Ele deve ser visto como alguém que não teve pudor de pegar em armas para matar e morrer em nome de seus ideais.
A vagueza do termo “humanista” me incomoda. Tem força e parece lutar por uma causa legítima: a libertação do homem. Não foi Marx quem disse “ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o homem é o próprio homem”? Isso é síntese do humanismo revolucionário. Sim, os humanistas acreditam demais na capacidade do homem de superar a si mesmo e estão dispostos a usar todos os meios necessários para isso. Resultado dessa crença humanista não foi outra senão terror e barbárie – legitimadas pela consagração desses pequenos miseráveis em heróis.