Marilena Chauí sempre nos presenteia com seus insights filosóficos e aqueles calhamaços maçantes que a paróquia ideológica aprecia como se fossem verdadeiras obras-primas.
Quando eu fazia meu mestrado na PUC-SP, tive o desprazer de ouvi-la em uma palestra atacando a Igreja Católica. Isso mesmo: dentro da PUC-SP, ela foi falar de De Espinosa à Democracia Brasileira. Sua “aula”, na verdade, não foi nem sobre Spinoza e muito menos sobre democracia, mas um – histérico – ataque ao que ela chamava de “imperialismo do papa”. Nada como atacar a Igreja Católica em uma instituição de ensino da própria Igreja... Isso deve ser o equivalente a uma palestra na Coreia do Norte sobre os benefícios da liberdade de expressão. A diferença, claro, é que Marilena seria convidada para um chá com Kim Jong-un, enquanto na PUC ela foi direto para a fogueira da bajulação.
Recentemente, em palestra de lançamento do seu livro sobre Patrística – na verdade, o terceiro volume de sua Introdução à história da filosofia, Marilena disse algo que me deixou bastante surpreso. Citarei o trecho inteiro:
“A minha ideia é: o cristianismo é uma forma de institucionalidade sociopolítica que decide os rumos da ação e do saber. E, por isso, é preciso discutir de onde é que essa coisa veio, né? E uma das coisas mais formidáveis, que me deixa muito agoniada, é o Uber. Na hora que eu desço e digo ‘muito obrigada, boa noite’, o motorista diz: ‘Fica com Deus’. Então eu sei que ele é pentecostal, que ele é fundamentalista. Eu fico desesperada com essa ideia de que isso se irradiou por dentro da sociedade de uma maneira tal que o cristianismo terá quantas metamorfoses forem necessárias para se manter. Vai desde o Império Romano, do imperador romano, até a igreja pentecostal lá na periferia. Quantas mudanças, quantas metamorfoses forem necessárias para se manter, o cristianismo as fará. Então, não vem dizer que é uma religião. É claro que é uma religião. Mas é uma intervenção deliberada sobre o pensamento, sobre a ação e sobre a afetividade. Então tem que examinar como é que isso começou, né? Então, o que eu procurei mostrar é qual é a peculiaridade de surgir uma filosofia, portanto, um trabalho racional. É isso: um trabalho racional que considera que a verdade já está dada, porque a verdade é revelada. Então, como é que eu posso falar na procura da verdade, se a verdade já está revelada? O que significa que a razão tem que se acomodar ao que já está revelado.”
Na nossa sociedade moderna, um simples “Fica com Deus” de um motorista torna-se um símbolo alarmante de uma teia de controle pentecostal que ameaça o racionalismo puro que eles, seres iluminados, tanto prezam
Esqueça os séculos de filosofia, o impacto na formação das universidades, o fomento à ciência, à arte, à música e ao pensamento crítico em diferentes épocas da história. Esqueça também a diversidade interna do pensamento cristão que vai de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, de Anselmo de Cantuária a Edith Stein, de John Henry Newman a Bento XVI – todos, talvez ingenuamente, tentando integrar fé e razão, questionar e entender o papel da divindade e da moral na existência humana. Para que complicar? Melhor rotular tudo como “uma grande conspiração para controlar o pensamento”.
O que seriam milênios de teologia como Gregório de Nissa, Thomas More ou Teresa de Ávila, e as obras de Dante Alighieri, John Milton, Johann Sebastian Bach, Hildegard von Bingen, Dostoiévski, T.S. Eliot, Flannery O’Connor, Andrei Tarkovsky ou Federico Fellini, a não ser uma desculpa elaborada para manter o povo na ignorância?
Inclusive, há uma citação de Fellini que sempre me inspirou a pensar nessa “conspiração de Deus” para dominar o homem: “A Igreja nunca me deu alegria... A Igreja me assusta até a morte. Sou cristão. Eu acredito na necessidade de Deus. Porque eu acredito no homem. E Deus é o amor do homem”.
Com relação a Marilena, como é interessante sua elaborada observação sobre o coitado do motorista de Uber. Na nossa sociedade moderna, onde cada interação banal aparentemente revela uma “irradiação” de fundamentalismo religioso, um simples “Fica com Deus” de um motorista torna-se um símbolo alarmante de uma teia de controle pentecostal que ameaça o racionalismo puro que eles, seres iluminados, tanto prezam. Realmente deve ser agoniante um “Fica com Deus, Marilena!”
É agoniante pensar como uma religião que passou de seitas marginais perseguidas para a religião oficial do Império Romano, depois se transformou com os reformadores protestantes desafiando a ordem papal, e agora encontra expressão no pentecostalismo dos subúrbios urbanos, pode ser tão adaptável. Mas que terrível deve ser uma religião que consegue se renovar e se adaptar às diferentes realidades sociais e culturais, em vez de desaparecer graciosamente na história. Quem precisa de uma religião que se reinventa? Uma religião estática e imutável não seria muito mais... progressista, Marilena?
Como é agoniante pensar que o cristianismo exige que “a razão tem que se acomodar ao que já está revelado”. Vamos ignorar o pequeno detalhe de que essa “verdade revelada” foi tema de intensos debates intelectuais ao longo dos séculos. O próprio São Tomás de Aquino, que, pelo visto, não leu o memorando sobre “não questionar” a verdade revelada, tentou usar a razão para entender a revelação e estabelecer uma síntese entre Aristóteles e o cristianismo. Para que escrever uma Suma Teológica quando você pode simplesmente se acomodar e virar “palha”?
Tal como as instituições que Marilena Chauí critica, seu espinosismo também está deliberadamente domesticando o pensamento e a afetividade dos que a ouvem. Ela quer guiá-los para uma visão específica do mundo
Mais um detalhe não pode escapar. Ironicamente, a professora espinosista, que odeia a classe média, ao criticar o cristianismo como uma “intervenção deliberada sobre o pensamento, sobre a ação e sobre a afetividade”, também não deixa de praticar sua própria versão de intervenção sobre a mente de seus alunos e ouvintes. Desde quando a bajulação é libertadora?
Ao adotar uma perspectiva espinosista – que, por sua própria natureza, vê Deus e a natureza como uma única substância e rejeita a sabedoria cristã –, ela está promovendo um enquadramento filosófico que também dita os rumos do saber e da ação. Seus alunos não estão ali só para “contemplar verdades reveladas pela razão”. Quando ela rejeita a possibilidade de visões que coexistem na tradição cristã, em favor de um naturalismo radical, ela estabelece as bases de seu próprio “dogma” – que também padece das patologias da razão.
Tal como as instituições que ela critica, seu espinosismo também está deliberadamente domesticando o pensamento e a afetividade dos que a ouvem. Ela quer guiá-los para uma visão específica do mundo onde a revelação religiosa é desprezada e a única verdade aceitável é aquela que passa pelo crivo da razão radical e naturalista. Ou seja, um dogma.
Como toda boa intervenção intelectual, a dela também busca influenciar e até converter os que estão ao seu redor, convencendo-os de que sua perspectiva é a mais justa, a mais racional, a mais libertadora. No fim das contas, parece que o desejo de controlar o pensamento e influenciar o saber não é exatamente uma característica exclusiva de uma tradição religiosa milenar. Tente imaginar a satisfação dela ao entrar em um Uber e o motorista dizer: “Fica com a Natureza, Marilena!”
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