Não é fácil vencer o estereótipo do professor de humanas. O lugar-comum sentenciou: doidão, esquerdista e militante. Dou aulas há muito tempo no ensino médio para saber o que a sociedade pensa – como se a sociedade pensasse alguma coisa – do valor do professor de humanas. Digo isso sem vitimismo e ressentimentos.
A despeito de todo desenho exagerado e algumas extravagâncias de colegas de profissão, as ciências humanas não pretendem outra coisa senão ser ciência, rigorosa e clara. Noutras termos: conhecimento verdadeiro justificado metodologicamente. Ou seja: para além de impressões pessoais e tolices poéticas, oferecer compreensão objetiva acerca da vida humana.
De fato, opinar sobre a experiência humana parece ser mais flexível do que sustentar uma tese sobre a estrutura molecular, a física dos buracos negros ou sobre qualquer assunto sério envolvendo cálculos e laboratórios. Quer ver um exemplo de opinião sem fundamento científico? Pois bem, sem clubismo. A jornalista Milly Lacombe, ao analisar o comportamento social dentro de campo do técnico do Palmeiras, Abel Ferreira, propôs uma tese sociológica para lá de duvidosa. Ela escreveu o seguinte:
“Abel Ferreira é um dos maiores treinadores do mundo, mas precisa se colocar em seu devido lugar. Uma mulher se comportando dessa forma seria massacrada. Um homem negro talvez também. Futebol tem que ter responsabilidade social. Em dias de jogo, violência doméstica cresce no Brasil. Mulheres apanham e morrem mais. Não me incomoda Abel falar palavrão, mas acho estranho ele chutar microfone e se aproximar furiosamente de Edina Alves, colocando a mão em seu ombro.”
Dar opinião sociológica é algo sério e exige rigor científico. Infelizmente, há quem não faça ideia do processo metodológico e corre lançar amargas assertivas sobre coisas que não domina
Obviamente, a jornalista não tem pretensões científicas. No entanto, deveria ser a primeira a respeitar os fatos. Se for só um artigo de opinião, então podemos dizer que se trata, no mínimo, de uma opinião sem pé nem cabeça, ou seja, opinião estúpida.
Não quero pensar qual seria o “devido lugar de Abel Ferreira”. Em termos de conquistas no futebol, os fatos falam por si – reafirmo, nobre leitor, falo isso sem clubismo. O que chama atenção no artigo são as associações alucinantes. Abel tem um temperamento explosivo na beira do campo, geralmente motivado por erros de arbitragem. Quem acompanha futebol deveria saber que mobiliza todas as paixões humanas. Revela nossa grandeza e, ao mesmo tempo, nossa miséria. É um espetáculo catártico tão trágico e empolgante quanto Édipo perfurando os olhos ao descobrir seu destino.
Agora, cá entre nós aqui, em nome da beleza cristalina dos fatos: qual a relação objetiva entre o comportamento intempestivo de Abel Ferreira diante de uma suposta injustiça da arbitragem contra seu time num jogo decisivo e o crescimento da “violência doméstica”? Pergunta sincera: de onde essa pessoa tirou tal informação capaz de sustentar tamanha inferência? Fora as frases de efeito: “uma mulher se comportando dessa forma seria massacrada” e “um homem negro talvez também”.
No atual imaginário social, sensível e identitário, usar “mulher” e “homem negro” pode até produzir algum efeito. Mas só no imaginário ideológico, porque cientificamente falando não diz absolutamente nada.
Querem ver? É só transcrever a frase nos seguintes termos: Abel Ferreira é um dos maiores treinadores do mundo, mas precisa se colocar em seu devido lugar. No lado oculto da Lua há unicórnios que, se se comportassem dessa forma, seriam massacrados. Um tailandês talvez também. Futebol tem que ter responsabilidade social e blablablá. A diferença, aqui, é que não somos socialmente sensíveis a unicórnios na Lua e a tailandeses.
Dar opinião sociológica é algo sério e exige rigor científico. Infelizmente, há quem não faça ideia do processo metodológico e corre lançar amargas assertivas sobre coisas que não domina. Quando você aponta erros, alega que era só um artigo de opinião. Tudo bem ser só um artigo de opinião, as pessoas ainda vivem num mundo livre para opinar sobre tudo – ou quase tudo, desculpem a ironia. Porém, desrespeitar os fatos diz mais a respeito do caráter de quem escreve que propriamente dos fatos.