Apesar do isolamento social compulsório em virtude da peste, 2020 não foi um ano em que poderia me orgulhar de ter lido muito. Li bem menos do que o planejado. Li alguns bons ensaios filosóficos e de sociologia; meia dúzia de obras de literatura; nada muito exagerado a respeito de história e antropologia; e li duas boas biografias.
Li, portanto, o suficiente para um professor, marido e pai prestativo. Mas é isto aqui que daria uma boa crônica: o que eu mais fiz na pandemia foi lavar a louça. Nunca lavei tanta louça em toda a minha vida. Recomendo! Depois de jogar videogame, lavar a louça é o ápice de distração que minha pacata vida doméstica pode almejar. Com relação aos livros, procurei zelar mais pela qualidade do que pela quantidade.
Dos livros de filosofia, destaco três: o belíssimo O peso e a graça, de Simone Weil; e o instigante O Pensamento da liberdade: linhas fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel, de Klaus Vieweg – um livraço! Também não poderia deixar de mencionar o livro de Patrick J. Deneen Por que o liberalismo fracassou?; já escrevi a respeito dele aqui.
A obra de Joseph Frank é um clássico sobre a vida e obra de Dostoiévski e uma verdadeira arte de como biografias deveriam ser escritas
De literatura, minhas melhores leituras foram Submissão, de Michel Houellebecq; Os deuses têm sede, de Anatole France; Todos os belos cavalos, de McCarthy; e muitas obras de Philip K. Dick, o grande autor de ficção conhecido mais pelas adaptações cinematográficas como Blade Runner, O Vingador do Futuro e a série O homem do Castelo Alto. Ah, li também a biografia de Dick escrita por Emmanuel Carrère: Eu estou vivo e vocês estão mortos.
De todos esses, o livro que mais me marcou foi nada mais nada menos que a monumental biografia de Dostoiévski escrita por Joseph Frank: Dostoiévski: um escritor em seu tempo (Companhia das Letras). Foi uma empreitada e, para facilitar a vida, optei pela versão condensada e aprovada pelo autor: um belíssimo catatau de mil e poucas páginas. Vale cada centavo. A edição original, também publicada em português, mas publicada pela Edusp, está divida em cinco volumes. Eu chego lá.
A obra de Joseph Frank é um clássico sobre a vida e obra de Dostoiévski e uma verdadeira arte de como biografias deveriam ser escritas. O que é marcante aqui é a abordagem: reconstruir todo o contexto histórico-cultural e as preocupações pessoais e espirituais que motivaram a alma desse grande escritor russo. Nunca li uma biografia que conseguisse, de forma tão bem feita e cativante, mostrar a relação entre obra, o contexto cultural e as motivações do escritor.
Não se trata, como diz o próprio Frank no prefácio, de escrever uma biografia puramente pessoal sobra a vida do autor. Nesse sentido, como ele escreve: “em meus livros, muito menos espaço é dado aos detalhes da vida privada de Dostoiévski e muito mais aos confrontos das várias ideias dominantes durante o período em que ele viveu”. Numa palavra, o projeto de Frank pode ser resumido assim: “uma forma de definir a originalidade de Dostoiévski é ver nela essa capacidade de integrar o pessoal com grandes questões sociais, políticas e culturais de sua época”.
Já li praticamente as obras completas deste grande escritor russo. Aliás, Dostoiévski foi decisivo para o meu processo de conversão. O dilaceramento do meu ateísmo começou com a leitura de Crime e Castigo, Os Demônios, Os irmãos Karamázov e O idiota – sua obra que melhor expressa os dramas do ideal cristão de santidade. Nela, resume Frank, Dostoiévski traz um “agudo senso da falibilidade humana, e da impossibilidade, que ele dramatizaria no príncipe Michkin, de qualquer ser terrestre realizar com plenitude o ideal cristão”.
Diante da finitude e precariedade da vida humana e contra todas as promessas catastróficas que Dostoiévski vê surgir na mentalidade radical moderna e seus “ismos”, diz Frank: “Para Dostoiévski, era somente na imortalidade após a morte que se poderia conseguir a realização perfeita do ideal cristão do amor”.
Como Dostoiévski certa vez escreveu, “se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade (…) eu gostaria mais de ficar com Cristo que com a verdade”. Eu também ficaria.
Numa carta escrita para consolar a irmã e a sobrinha pela morte do cunhado, escreve Dostoiévski: “Lamentem e derramem lágrimas, mas não cedam, em nome de Cristo, ao desespero. Veja, vocês acreditam numa vida futura, nenhuma de vocês foi infectada pelo ateísmo pobre e estúpido. Lembrem-se de que ele agora sabe realmente a seu respeito; nunca percam a esperança do reencontro e acreditem que essa vida futura é uma necessidade, não apenas um consolo”.
Como Dostoiévski certa vez escreveu, “se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade (…) eu gostaria mais de ficar com Cristo que com a verdade”. Eu também ficaria.
Ah, para encerrar, lembrei de uma coisa: A tradição do presépio foi criada por ninguém menos do que São Francisco de Assis. Nesta semana, nos céus, teremos a Estrela de Belém, um fenômeno astronômico em que se dá a conjunção entre Júpiter e Saturno. Contudo, assim como foi para os três reis magos, que a Estrela-Guia nos revele o nascimento de Jesus e nos conduza até Sua face. Um Feliz Natal do Senhor para você, caro leitor!