Detalhe de “Death in the Sickroom”, de Edvard Munch.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Essa foi uma semana difícil para mim e minha família. Acreditei que estivesse pronto, que a filosofia me ensinaria a lidar com esse momento. Mas toda sabedoria filosófica se tornou inútil. Não é fácil suportar o peso da perda e a derrota humana para o câncer. Minha mãe nos deixou com 66 anos. Sim, para os nossos padrões, era jovem. E era mesmo. Lutou até o último suspiro. Fez de tudo para que estivéssemos todos juntos. Portanto, nunca desistiu da vida, embora tenha feito uma opção difícil e não convencional: não morrer em um hospital. Não aceitou a instrumentalização da morte.

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Hospital não é lugar para morrer. Lá, todo esforço (e, de certo modo, desprezo) é para manter o paciente vivo. Digo “desprezo” porque hospitais desprezam o drama da morte; logo, desprezam o sentido da vida. A vida é um saco orgânico e lá fazem de tudo para mantê-lo vivo. Nos dias em que ela esteve internada, entendi uma coisa: a impossibilidade de um hospital ser um ambiente humanizado. Na verdade, é o contrário: hospitais são ambientes de desumanização na medida em que negam e lutam contra a morte. Claro que agradeço todo esforço e atenção que recebemos das enfermeiras. No entanto, elas são engolidas pela estrutura institucional, pela lógica burocrática da manutenção da vida biológica.

O amor que vi em minha mãe não era um amor que se sustentava no ganho ou na promessa de reciprocidade. Era um amor que se deu sem reservas, que se sacrificou, que aceitou a dor para que a dignidade fosse preservada até o fim

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Não posso acreditar que todo sofrimento é em vão. Minha mãe morreu em casa, com a devida atenção dos filhos. Somos três. No último mês, cuidamos para que minha mãe encontrasse dignidade na hora de morte. Entendi, nesses dias, o significado do amor incondicional de mãe, o amor de sacrifício, de doação absoluta ao outro.

Médico, na atuação de médico, não se sacrifica pelos seus pacientes. É um técnico da manutenção da vida. Apenas um técnico que domina uma técnica. Minha mãe passou alguns dias no leito do hospital. Mas, quando vi o doutor responsável, cercado de seus alunos residentes, olhando para os moribundos como se fossem objetos de aula, eu entendi uma coisa simples: hospital não pode compreender a morte, porque é a representação da vida moderna. E a vida moderna não aceita ser derrotada pela morte. O sofrimento da pessoa humana é um escândalo para a ideia do progresso. Por isso, hospitais são ambientes de impessoalidade, da frieza técnica. Claro que eu entendo a importância de hospitais. E agradeço toda a atenção técnica que recebemos dos funcionários. Mas não queríamos uma morte burocrática. Demorei para aceitar, mas minha mãe sabia disso.

A experiência de ver minha mãe decidir não morrer no hospital foi, no início, um choque, uma ruptura com tudo o que a gente aprende sobre como encarar a morte. A filosofia, que sempre me trouxe algum consolo, revelou sua limitação nesse momento extremo. Pode-se teorizar sobre a morte, discutir o absurdo, o niilismo, a transcendência. Mas a verdade brutal do fim da vida escapa às abstrações. No entanto, o que aprendi ao lado da minha mãe e dos meus irmãos nesses dias finais foi algo que nenhum sistema filosófico consegue captar completamente: o amor incondicional, o amor que não busca recompensas, o amor que se traduz em estar presente, em oferecer cuidado, em testemunhar a dor de outra pessoa sem fugir. Amor não é uma expressão de prazer, uma alegria. É estar presente. Esse Amor é a encarnação absoluta da presença.

Confesso que não foi fácil. Cada momento ao lado dela, vendo sua força diminuir, foi um exercício de aceitação e de amor. Um amor que, como ela nos ensinou, não teme o sofrimento porque o integra à vida. O amor que minha mãe nos mostrou contrastava violentamente com a lógica moderna da manutenção da vida.

Quando falamos de amor na modernidade, o tratamos como afeto ou prazer, algo que está sempre conectado a um ganho, a um benefício pessoal. O amor que vi em minha mãe não era um amor que se sustentava no ganho ou na promessa de reciprocidade. Era um amor que se deu sem reservas, que se sacrificou, que aceitou a dor para que a dignidade fosse preservada até o fim. Eu e meus irmãos presenciamos todo o declínio da vida de nossa mãe. O que a doença maldita fez com ela. No fim, ela só queria nos dar uma última lição de amor. Obrigado, mãe, por isso!

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]