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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Identitarismo

É a cidadania que importa

(Foto: Werner Heiber/Pixabay)

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Uma das mais valiosas contribuições da abordagem filosófica na análise de problemas reside na recusa em aceitar verdades sem a devida crítica de seus fundamentos. A filosofia incentiva, em vez disso, a investigação das condições de possibilidade de toda pretensão de verdade. Formular perguntas simples é uma questão de treino do intelecto e humildade moral. Profissionalmente, minha relação com a arte de ensinar tem a ver com o velho mandamento socrático: uma vida não examinada não é digna de ser vivida.

Por isso, desconfio sempre quando leio matérias jornalísticas sugerindo temas como “Mulher e negro na política reduzem corrupção e aumentam projetos de inclusão”. Não tenho dúvidas a respeito da importância de mulheres e negros estarem envolvidos com política. Minha concepção republicada de política jamais me permitiria distinguir um cidadão pela sua representatividade social. O que faz um bom político, assim como um mau, não tem a ver com sua filiação social, mas com o seu caráter e formação.

Cada linha do documento é permeada por um fundamento tratado como verdade incondicional: identitarismo melhora o mundo. Noutros termos, parte-se do princípio de que corrupção e boa liderança têm a ver com o gênero e com a etnia

Meu problema é com a sugestão da matéria. Segundo o texto, que foi baseado na pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper a pedido da Fundação Lemann, “lideranças públicas femininas têm até 35% menos chances de se envolver em casos de corrupção do que as masculinas, enquanto líderes negros propõem três vezes mais leis e políticas públicas dedicadas à inclusão do que os não negros”. Não faço a menor ideia do que significa “x% de chance” e qual a relevância desse dado para a construção e manutenção do bem comum. Quantificação de virtudes não faz o menor sentido.

Como desconfio de todo quadro de referência teórica inspirada no identitarismo, fui ler a pesquisa para compreender melhor o que eles entendem por “liderança”. Afinal, isso seria um tema central para ser discutido. Para minha surpresa, no documento chamado “Síntese de evidências sobre a presença de mulheres e pessoas negras em cargos de liderança e autoridade” não há nenhuma boa definição a respeito do que significa, veja só, “liderança”. Para ser bem honesto, a única definição para liderança é procedimental:

“A liderança é um conceito amplamente discutido e estudado, mas ainda desafiador de ser definido. Em sua essência, a liderança é um processo que envolve influenciar grupos para alcançar objetivos comuns. Embora autoridade e liderança sejam conceitos distintos, é na intersecção entre eles que reside o verdadeiro poder de um líder. Quando um líder assume uma posição de autoridade, ele está mais capacitado para implementar mudanças significativas e tomar decisões cruciais.”

Em resumo, o documento descreve o que um líder deve ter em termos puramente operacionais: “A literatura demonstra a importância da liderança por ela ser: 1) um facilitador da ação coletiva e da mudança; 2) estimular a motivação; 3) aumentar a produtividade; 4) promover um ambiente de trabalho saudável; 5) facilitar a resolução de conflitos; 6) conduzir mudanças e inovações”. Em seguida, o texto assegura que pesquisas demonstram que “a presença equitativa de mulheres em cargos de liderança, seja no setor privado ou público, traz inúmeros benefícios” e que “a representatividade negra em posições de liderança também é fundamental”.

Enfim, cada linha do documento é permeada por um fundamento tratado como verdade incondicional: identitarismo melhora o mundo. Noutros termos, parte-se do princípio de que corrupção e boa liderança têm a ver com o gênero e com a etnia. Só a inclusão de mulheres e negros fará do mundo um lugar melhor. Em vez de pensar em ternos de virtudes universais para uma liderança, o estudo foca nos benefícios da identidade.

Não tenho dúvidas a respeito da importância de mulheres e negros estarem envolvidos com política. Mas o que faz um bom político, assim como um mau, não tem a ver com sua filiação social, e sim com o seu caráter e formação

Desde que a filosofia passou colocar em evidência problemas de natureza política, lá na Grécia Antiga, a pergunta fundamental girava em torno das qualidades éticas de um líder. Em Platão, o bom governante é aquele que é capaz de organizar, primeiro, a própria alma. Ele deve possuir sabedoria, que é concebida como a virtude fundamental que permite ao governante discernir o que é melhor para a sociedade como um todo. Tudo isso seguido de uma boa compressão a respeito da coragem, da justiça e da temperança.

Não cabe aqui analisar e dizer o que significa cada uma dessas virtudes no contexto da boa liderança. Apenas destaco um dos problemas centrais em filosofia política. Trouxe-o apenas para mostrar que o assunto é bem mais complexo do que colocar dados numa planilha e alegar que “evidências demonstram”. Ora, liderar não significa apenas “influenciar grupos para alcançar objetivos comuns” ou ser um “facilitador da ação coletiva”. Até um bom líder de seita é capaz de fazer isso.

Política precisa ser vivida a partir de uma boa noção do que significam a justiça e o bem comum. Mulheres e negros devem participar da política como qualquer outro cidadão. Se eles cometerem erros de tomada de decisão, eles serão criticados por serem mulheres e negros? Óbvio que não. É a cidadania, como princípio fundamental da vida republicana, que importa.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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