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Não é preciso ter medo dos direitos humanos

Foto: Organização das Nações Unidas (Foto: )

Em 10 de dezembro de 2018, celebrou-se o aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Torcendo ou não o nariz para o que, hoje, a Organização das Nações globalmente representa — e eu conheço um montão de gente cheia de esquisitices a respeito de “direitos humanos”, assim como conheço outra montanha de esquisitices contra os “direitos humanos” —, não se pode negar a grandeza e o alcance desse documento. É, pois, o marco de uma conquista que orienta, para o bem ou para mal, o atual curso das relações entre países e pessoas. Porque, afinal de contas, o que importa para os direitos são as pessoas.

Não sou daqueles que acreditam em “bicho-papão” criado para corroer, pelo lado de dentro, os alicerces da “civilização ocidental”. Quem tem medo de “direitos humanos” em nome de uma nova e circense “cruzada” em defesa da boa e velha “civilização ocidental” pode estar trocando uma abstração pela outra, um nome pomposo por outro. De qualquer maneira, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos celebramos, acima de tudo, os paradoxos de uma civilização que sempre se orientou para a consolidação do ideal universal de ser humano. Sim, é um ideal, apenas. Tão frágil quanto grandioso, e que expressa nada mais nada menos do que a busca pela Verdade da natureza humana — com “v” maiúsculo, por favor.

(Agora, cá entre nós, se esse ideal funciona na prática, aí são outros quinhentos. Fato é que daqui em diante ninguém ousará mais lutar a guerra que acabará, para sempre, com todas as guerras.)

No frustrado fim da década de 40, muita gente se envolveu na redação do texto da Declaração. Se você gosta de name-dropping, não se decepcionará: de jurista a filósofo, de político a jornalista, gente graúda de vários países, com certo otimismo envergonhado, porém necessário, sentou para discutir princípios gerais para a humanidade. Fosse no Brasil a assembleia, chamaríamos a todos — com certo pedantismo, de praxe — de “time de notáveis”. A comissão responsável pela elaboração do texto foi presidida por Eleanor Roosevelt — ela mesma, a esposa do presidente do Estados Unidos, aquele do New Deal. Estavam lá também Charles H. Malik, John P. Humprey e René Cassin, revisor do esboço final.

Agora considerem a seguinte situação. O mundo tinha acabado de atravessar as trevas de duas grandes guerras. Entre a catástrofe e o inferno — referência que eu faço aos títulos dos livros do historiador Max Hastings sobre a Primeira e a Segunda Guerra —, quem teria a moral para redigir esse documento e falar em nome de “valores universais do homem”? Para lembrar de uma perturbadora provocação de Theodor Adorno: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. E eu acrescentaria, considerando a contradição explícita do projeto civilizador: como é possível uma Declaração Universal de Direitos Humanos depois de Auschwitz?

De intelectuais, cientistas e políticos de gabinetes propondo soluções mirabolantes para a perpétua paz mundial, o mundo já estava bem de saco cheio. Não é tarefa fácil, convenhamos. Quais princípios serão esses? Por que esses e não outros? Quem irá defini-los? Defendê-los? Protegê-los? Impô-los…? Desde que não se fale mais em “novo homem” e “nova sociedade”, seguimos em frente.

Tentem, um dia na vida de vocês, conversar com cristãos de diferentes denominações sobre seus dogmas. Coloque numa “Assembleia Geral de Cristãos” católicos, luteranos, calvinistas, arminianos, anglicanos, pentecostais, neopentecostais etc. para discutirem os princípios universais do cristianismo. Não, não sairá uma Declaração Universal Cristã. Se a disparidade de crenças fundamentais entre os próprios cristãos é um problema, imagine a disparidade de crenças entre os membros de uma comissão para redigir uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Para que o ideal de “tolerância” não se transforme num novo dogma de um novo homem e de uma nova sociedade livre, igual, secular e fraterna, que é a base da religião civil moderna responsável pelas atrocidades modernas, é preciso de mais que boas intenções. O inferno era logo ali e ninguém, aparentemente, gostaria de flertar com o “príncipe do mundo” — vale lembrar que o Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, só veio a público em 1973 para revelar as monstruosidades de Stalin (o que teve de intelectual se desdobrando publicamente para tentar justificar o apoio pio àquilo não é brincadeira).

Por isso, antes de baterem o martelo para fechar o texto, os redatores tiveram de recorrer à Unesco, que mui sabiamente criou uma “Comissão para os Fundamentos Teóricos dos Direitos Humanos”. Em outras palavras, literalmente foram pedir ajuda aos “universitários” — um time de notáveis para avaliar o time de notáveis. Dentre os notáveis dos notáveis, estavam Mahatma Gandhi, Bertrand Russell, Benedetto Croce, Pierre Teilhard de Chardin, Rabindranth Tagore, Aldous Huxley, Edward H. Carr e Jacques Maritain. Nada mais nada menos que os mais notáveis intelectuais, filósofos, poetas e políticos da época.

De todos os envolvidos, pessoalmente simpatizo mais com Jacques Maritain. O filósofo participou como chefe da delegação francesa. Sua contribuição para o “espírito” do documento foi fundamental. Na verdade, é impossível entender a Declaração Universal dos Direitos Humanos sem entender o papel que Maritain desempenou na elaboração. É bizarro e coisa de jornalista preguiçoso achar que o documento foi exclusivamente inspirado nos philosophes iluministas; quando, na verdade, a destacada participação de Maritain prova o contrário. Jacques Maritain foi dos mais importantes filósofos católicos de tradição tomista do século 20. Portanto, reabilitou os estudos dos direitos naturais. Leia isto aqui: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana…”. Não, sozinhos os iluministas não dão conta. O tema da “dignidade inerente” é anterior e depende de outras tradições filosóficas.

Graças à eloquente defesa de Maritain da concepção de dignidade do homem fundada nos alicerces da lei natural — garantindo, assim, a objetividade universal dos direitos inalienáveis ​​ compreendidos pela razão e não por um mero sentimentalismo — é que os termos “dignidade” e “pessoa” aparecem no texto final da Declaração, e não “indivíduo”, “ser humano” e “homem”, como estavam no rascunho. Nesse sentido, a influência de Maritain é realmente imprescindível para o texto que celebra 70 anos. Se o termo “pessoa” aparece 28 vezes, entre o preâmbulo e os artigos, agradeça, primeiro, ao filósofo católico neotomista francês e não aos iluministas seculares e jacobinos. Quem defende a civilização ocidental poderá dormir em paz e não ter medo dos direitos humanos.

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