Presidente Jair Bolsonaro cumprimenta manifestantes em frente ao Palácio do Planalto, neste domingo (15).| Foto: Sérgio Lima/AFP
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Muito mais do que a razão, o nutriente básico da crença política é a poderosa mistura do que vem da memória e do que é, sobretudo, produzido pela imaginação. Por isso as tribos morais são imunes a argumentos. E não adianta botar os fatos diante dos olhos de quem já mergulhou com os dois pés no bárbaro lamaçal de suas preferências ideológicas. Os ideais soberanos da imaginação estão acima de tudo; e para o coronavírus vai uma banana presidencial.

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A coerência lógica de um ideal político pode ser impecável sob o ponto de vista de sua representação simbólica e do sentimento que desperta em seus devotos, mas não necessariamente essa coerência será determinada pelo que as coisas de fato são. O imaginário, quando comanda sozinho nossas condutas e escolhas, não se importa com mais nada além de manter a coerência interna dos ideais que ele mesmo produz. Contudo, a lama das ideologias, que também pode ser verde e amarela, mais cedo ou mais tarde dará seus frutos. E as consequências são reais. A água imaginária não tem o poder de apagar um incêndio real.

Chamo de tribos morais (conceito que peguei emprestado do filósofo Joshua Greene) a autopercepção que um determinado grupo – no caso, aqui, um grupo político – faz de si mesmo a partir de um forte ideal de destino. Tribo moral simplesmente porque os laços, que dão identidade ao grupo, são amarrados pelos valores mais fortes que compartilham entre si. Não são apenas identidades sociais ou econômicas. Mais do que isso, uma tribo moral fornece o senso de participação de um mesmo destino e o comprometimento com uma causa moral última – embora essa causa possa ser difusa para uma boa parte do grupo que depende no núcleo militante.

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Não adianta botar os fatos diante dos olhos de quem já mergulhou com os dois pés no bárbaro lamaçal de suas preferências ideológicas

A imaginação, portanto, atua como uma poderosa ferramenta mental capaz de combinar a memória com os nossos ideais de futuro de um jeito que a razão, impotente nesse caso, não consegue comandar. Exigir racionalidade em política pode ser uma tarefa tão inútil como penalizar Sísifo fazendo-o carregar uma pedra.

Num resumo básico das mentalidades políticas, esses ideais podem ser, basicamente, de dois tipos: ou são ideais de um presente catastrófico ou são ideais de um futuro promissor.

No caso de um ideal catastrófico, o crente político sempre enxerga no estado atual de coisas, representado pela experiência do presente, uma ameaça. Assim, o presente precisa ser superado – e, no novo tempo do mundo, superado com urgência! – em nome de um passado perdido cuja ação política, mediante a determinação do povo e de seu líder, tem a sagrada e heroica missão de restaurar. O destino moral da tribo depende do resgate de forças passadas que foram ocultadas pela perniciosa mentalidade moderna. Esses são apocalípticos e reacionários.

Por outro lado, o ideal promissor se consolida na forma contundente de negação de todo passado. Seu modelo, o lugar da genuína libertação, está no futuro. A história marcha inevitavelmente para a frente e em nome da gloriosa realização de uma nova sociedade, de um novo homem e de uma nova justiça. O processo de negação do presente é, em sua essência, revolucionário na medida em que faz tábula rasa de toda história. O destino dessa tribo moral não pode aceitar o legado da tradição. Tudo o que é tradicional fede. Em suma, esses são utópicos e revolucionários.

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Nesse sentido, apocalípticos e utópicos são dois tipos mentais básicos de tribos políticas que se assemelham por negarem a realidade e o presente com firmeza e determinação. Não é bom tentar dialogar com eles. Estão, como eu disse, imunes ao diálogo. Pois são radicais presos à crença fatal do destino da história muito mais do que meros funcionários públicos capazes de reconhecer o limite funcional de suas atribuições no jogo do dia a dia político. Para deixar de ser representado como mero presidente da República e passar a ser adorado como salvador da pátria, cá entre nós, o esforço espiritual exigido deve ser bem alto.

O filósofo político Mark Lilla batizou a mente dos apocalípticos de “a mente naufragada” e a mente dos utópicos de “a mente imprudente”. A mente naufragada representa a mentalidade reacionária; a mente imprudente, a revolucionária. Ele foi muito feliz ao mostrar que “os reacionários não são os conservadores”, pois “à sua maneira”, diz Lilla, eles “são tão radicais quanto os revolucionários e não menos firmemente presos nas garras da imaginação histórica”.

A mentalidade política que sustenta o bolsonarismo é formada pela mistura de apocalípticos e utópicos

Por incrível que pareça, a mentalidade política que sustenta a crença do atual governo Bolsonaro – o bolsonarismo – é formada pela mistura de apocalípticos e utópicos. Em outras palavras: uma espécie de “reacionarismo revolucionário”, com o perdão do oximoro (alguns militantes do governo chegaram a falar em “revolução conservadora”, o que faz bastante sentido nesse contexto das mentalidades).

O fato é que fechar o Congresso, atacar o STF ou até evocar o AI-5 são apenas as caricaturas mais grotescas desse sentimento muito mais poderoso, difuso e destruidor da imprudente mentalidade naufragada. Um sentimento que politiza a história em um nível de negação tão absurdo que a responsabilidade política de um homem público perde todo significado para quem partilha desse mesmo senso de destino.

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O coronavírus não passa de invenção comunista, globalista e afins. A China quer dominar o mundo. Se Deus está conosco, azar dos nossos inimigos, que morrerão pela ira de Deus. O que são as estatísticas de uma “mera gripe” perto da energia vital dessa tribo moral que ampara as suas expectativas históricas não no presente, mas na sua profunda negação ideológica? Enfim, não espere outra coisa do presidente e de seus devotos, eles estão em plena posse e vigor de suas faculdades imaginativas.