Há muitos Cristos, mas apenas um viveu há mais dois mil anos. O que faz do cristianismo uma religião, acima de tudo, teológica-histórica muito mais do que uma religião mítica. Como homem, Jesus nasceu, brincou, amou, chorou, sorriu, pregou, comoveu, ensinou e apanhou. Além disso foi traído, julgado, humilhado, açoitado e crucificado. Como Salvador do mundo, ressuscitou. É o próprio Deus encarnado na história, o modelo moral absoluto de bondade, misericórdia e amor. Em sentido teológico, Jesus é “Filho” de um ser que também é “Pai” e “Espírito Santo”. Porque Deus não escondeu a sua face...
Deixemos de lado as exigentes questões teológicas. Neste Natal, gostaria de chamar atenção para o seguinte: parece que muita gente pretende tomar a figura de Cristo para si. Fazer dele o símbolo máximo de uma causa particular. Pois a dignidade de uma causa específica tem, no amparo de Cristo, seu significado mais humano, a legitimidade suprema do que deve ser realmente feito. O coroamento não de espinhos, mas de tudo o que é revestido de glória e bondade. Afinal, Cristo é, em sua glória universal, o contrário da maldade, da ganância e do ódio. Quem não desejaria esta companhia e apoio?
Assim como fazem de Hitler o representante máximo de tudo o que não devemos ser e fazer. O ditador alemão se tornou, literalmente, o anticristo. Nada como associar os nossos inimigos a essa figura torpe e diabólica responsável pela morte de milhões de pessoas. Hitler é a trapaça na história. Ódio feito carne em pessoa. O vazio supremo. O esgotamento de todas as esperanças. Ora, como havia batizado o filósofo Leo Strauss de “argumento ad hitlerum”, ouso utilizar uma nova categoria para identificar certa falácia informal com alto grau de apelo retórico: argumentum ad Christi.
Se você tem dúvidas quanto à legitimidade de sua causa, divulgue Cristo como o maior representante dela. Seu principal apoiador. Aos inimigos, já sabe: suástica. Embora você não tenha feito qualquer esforço de carregá-la, o peso da cruz batiza os seus interesses ideológicos. Eis a diferença básica entre ser o algoz e a vítima.
A fórmula do ad hitlerum pode ser assim resumida: “Se Hitler foi contra X, X é desejável”; “Se Hitler apoiou X, X é a expressão puro do maligno e do inaceitável”. Por outro lado, o argumentum ad Christi pode ser apresentado com a seguinte estrutura: “Se Cristo foi contra X, X é altamente indesejável”, “Se Cristo foi X, X é a expressão pura da bondade e do que é desejável”. Não se trata de uma mera coincidência que muitos críticos de Papa Bento XVI, no auge sem vergonha da construção de um estereótipo, tentavam associá-lo ao nazismo. Isso para não falar de Pio XII, cuja polêmica já enche algumas prateleiras de bibliotecas (particularmente, gosto do livro do Mark Riebling, O papa contra Hitler, Leya, 2018; e do Andrea Tornelli, Pio XII: o Papa dos Judeus, Editora Civilização).
Porque todos querem um Cristo para chamar de seu. Comunistas imaginam Cristo como comunista, o primeiro e o mais importante de todos — seguido dos apóstolos São Marx e São Lênin; para homossexuais, Cristo Jesus não poderia representar melhor os seus dramas da sexualidade como sendo, claro, um homossexual; no caso dos liberais, Cristo foi um empreendedor liberal, o modelo de autonomia, sagacidade e individualidade; feministas constroem um Cristo libertador das mulheres, um Cristo “feministo”, simpático à causa que foi deformada por apóstolos machistas; revolucionários e reacionários fazem a mesma coisa e modelam Cristo a suas pretensões, para os primeiros representa a apoteose da revolução e do novo mundo; para os segundos, o baluarte da tradição.
Recentemente, em artigo, um certo psicanalista, num impudico delírio sodomita, projetou no Cristo os seus próprios desejos: “Eu realmente gostaria que Jesus fosse homossexual, ou seja, que fosse um exemplo da liberdade de quem se permite gozar pelo prazer, sem desculpas. Talvez um Jesus gay bastasse para desmentir os carrancudos que, em nome dele, promoveram a repressão sexual como ideal”.
Para ele, a verdadeira liberdade do homem é poder “gozar pelo prazer”. Esse sonho de libertação sexual foi destruído pelo “grupinho de padres neuróticos” — referindo-se aos teólogos e filósofos da Patrística como os responsáveis por edificar um cristianismo supostamente triste e contra prazeres hedonistas. Enquanto os verdadeiros cristãos — os que foram imaginados por ele — só queriam alegria e prazer. Mas mal sabe o psiquiatra que os Pais da Igreja, e todos os mártires, prezavam a verdadeira alegria, aquela que nos liberta da escravidão, da idolatria do prazer fugaz e da deformação do pecado.
O fato é que muitos querem um Cristo que se adeque à sua própria imagem e semelhança. Raros são aqueles que buscam imitá-Lo, mas exigem que Cristo imite a todos eles: comunista, revolucionário, liberal, feminista, gay, empresário, conservador, político de esquerda, de direita... enfim, um Cristo que é todos na medida em que já não é mais ninguém. O Alfa e o Ômega de um humanismo pretensioso e vazio.
Espero que neste Natal, façamos um esforço para reverter isso, e, assim como diz São Francisco de Assis, possamos pedir, com humilde simplicidade: “Senhor, fazei de mim um instrumento da Vossa paz”.
Um Feliz Natal do Senhor a todos!