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Recentemente, um jornal concorrente publicou uma matéria com a seguinte manchete: “Fotos mostram que não há embrião visível até 9 semanas de gravidez”. O subtítulo não deixa margens para dúvidas: “Grupo divulgou imagens a fim de combater a desinformação sobre aborto”. Sim, caro leitor, o objeto do texto era para “combater desinformação” acerca do aborto.
O texto alega que “Para tentar combater a desinformação relacionada ao aborto, um grupo de profissionais de saúde e ativistas pelos direitos reprodutivos dos Estados Unidos decidiu divulgar imagens reais do desenvolvimento dos tecidos dentro do útero durante as primeiras nove semanas de gravidez. As fotos revelam que, até esse estágio, não há embrião visível ou qualquer coisa que se pareça com um feto”. Não me surpreende, vindo de quem veio.
Se isso não for negacionismo, sinceramente já não sei o que é. Afinal, os terraplanistas não pensam diferente: o ser é igual ao que aparenta. “Se minha experiência vê a Terra plana, logo só pode ser plana”. O estranho no caso dos defensores do aborto, cuja lógica não é lá muito diferente, consiste justamente no fato de que os ativistas tentam se fundamentar na ciência, em “fotos” e “imagens reais”. É de uma ignorância criminosa tudo isso.
Debates mais sérios a respeito do estatuto do embrião vão por um caminho filosófico muito mais sofisticado do que essa discussão que só convence adolescente no TikTok
Em geral, melhores argumentos a favor do aborto dizem que o embrião só deve ser considerado pessoa depois de desenvolver sistema nervoso e consciência. No entanto, trata-se justamente do contrário: o embrião, mesmo nos primeiros dias de sua gestação, só desenvolve sistema nervoso e consciência por já ser uma pessoa.
Por isso, considero o debate a respeito de quando a vida de uma pessoa começa tema instigante. Quando podemos dizer que algo deve ser considerado pessoa? Na concepção? 12 semanas depois? O que é pessoa? Não se pode desprezar o debate filosófico em torno desse tema. Há consequências sérias. Vale lembrar que a categoria antropológica “pessoa” é invisível para qualquer método científico.
Debates mais sérios a respeito do estatuto do embrião vão por um caminho filosófico muito mais sofisticado do que essa discussão que só convence adolescente no TikTok. Dois argumentos que eu acho interessantes são a analogia da bolota de carvalho e o paradoxo de Sorites. Se você não os conhece, recomendo dar uma pesquisada. Todos tentam inviabilizar a ideia de que um embrião possa ser uma pessoa logo nos primeiros dias de gestação. Embora discorde, não nego a beleza do esforço.
Eis o argumento da analogia da bolota de carvalho – trago aqui trechos do comentário do filósofo Michael Sandel, que defende o aborto em seu livro Contra a perfeição:
“O fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que os embriões são pessoas. Assim como todo carvalho um dia tenha sido uma bolota, isso não significa que as bolotas sejam carvalhos, nem que deveríamos lamentar a perda de uma bolota devorada por um esquilo em meu jardim do mesmo modo que lamentaria a morte de um carvalho abatido por uma tempestade. Apesar de terem uma relação de continuidade em termos de desenvolvimento, bolotas e carvalhos são coisas diferentes. O mesmo vale para embriões e seres humanos. Do mesmo modo, assim como as bolotas são carvalhos em potencial, os embriões humanos são seres humanos em potencial.”
O outro argumento é ainda mais exigente. Chamado de paradoxo de Sorites, ele diz o seguinte:
“Suponha que alguém lhe pergunte quantos grãos de trigo constituem uma pilha. Um único não constitui, nem dois, nem três. O fato de não haver nenhum ponto não arbitrário que estabeleça quando a adição de mais um grão fará um punhado virar uma pilha não significa que inexista diferença entre um grão e uma pilha. Nem nos dá, tampouco, motivos para concluir que um grão deve ser uma pilha. Todos concordariam que um homem com um único fio de cabelo na cabeça é careca. Que quantidade de fios marca a transição entre ser careca ou não? Embora não haja resposta determinada a essa pergunta, não se depreende com isso que não exista diferença entre ser careca e ter uma cabeça cheia de cabelos. O mesmo vale para a condição de pessoa”.
Se você pretende defender que um embrião ainda não é uma pessoa, eu sugiro discussões a partir desses tópicos. O resto não passa de um irônico negacionismo do bem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos