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No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus – assim abre João o seu belo Evangelho. No original grego, está registrado: “en archê ên o logos kai o logos ên próston theón kai theós ên o logos”. Desculpe o proselitismo teológico, mas há tanto aqui. Fiquei surpreso quando fiz um estudo deste Prólogo numa disciplina de Filosofia. Sim, há relação íntima entre Deus e Lógos. A fé cristã é, também, aquela capaz de trilhar os fundamentos da razão, de se justificar em argumentos. Sua força e liberdade residem aí.
Em grego, “Palavra” se escreve Logos, um termo polissêmico que, entre outras coisas, também significa “discurso racional, pensamento, argumentação, razão”. Nos fundamentos da cristandade, além da fé, também há “Razão”. Não seria demais traduzir: “No princípio era a Razão”, que se fez homem. Jesus é Deus que se fez carne e habitou entre nós. Seria essa a esperança do Natal, a palavra viva de Deus Salvador que se fez primeiro menino? Deixemos de lado a religião. Gostaria de abordar um pouco mais as dimensões do pensamento.
Mais do que a razão, foi a imaginação que, primeiro, humanizou o animal humano
O termo “logos” tem sentido muito amplo. Pensar a respeito dele nos coloca nas fronteiras de todo conhecimento e nas dimensões do próprio pensamento. Pois, quando a razão nasceu – não como menino na manjedoura – entre filósofos gregos, nasceu se diferenciando da narrativa mítica. Estabeleceu-se, assim, uma fronteira decisiva entre mito e razão. Dois tipos de palavras: a narrada e a argumentada, respectivamente.
No mito, a dimensão imagética é componente estruturante. Mais do que a razão, foi a imaginação que, primeiro, humanizou o animal humano, porque é da imaginação que surgem não só os mitos como narrativas literárias, mas fundamenta as primeiras respostas do homem diante da experiência dolorosa do sagrado.
Por isso, arte e religião ocuparam lugares centrais em toda a história humana. A primeira como expressão material e simbólica da segunda – que busca responder, com a força da experiência da narrativa sagrada, o porquê mais decisivo dos seres humanos, isto é, a consciência de nossa finitude que se lança como esperança de eternidade. Afinal, não seria esse o lugar ocupado pelas narrativas míticas? Não trato mito como tolice. Naturalistas consideram que só a ciência experimental é capaz de dar respostas a todas as perguntas humanas. Para que Homero se a gente tem Dawkins?
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Mas nós precisamos superar as duas atitudes inibidoras do pensamento: a atitude autoritária/dogmática e a atitude relativista do vale qualquer coisa. Tradicionalistas dogmáticos e pós-modernos niilistas são, neste contexto, faces da mesma moeda.
Se há um mundo constituído por fatos, nem tudo é permitido, nem mesmo para o pensamento. Ou seja, podemos acessar a realidade e descobrir o que ocorre. Porém, narrativas ideológicas – entendidas aqui no sentido de um pensamento total presumido como verdadeiro antes do contato com a realidade – partem sempre de uma visão limitada e limitadora do mundo. As ideologias deformam a imagem do todo como o espelho trincado.
Não é fácil suspender nossas opiniões ideológicas. Essa atitude deveria fundamentar nossas posturas críticas, que começam e terminam, constantemente, com a “coragem de fazer as boas perguntas”. Nos fundamentos da atitude crítica, assim, encontramos não só o lugar da filosofia, mas de toda atitude que se pretende científica. Vale ressaltar que não se trata de “ciência” no sentido de uma área específica. Não me refiro apenas à neurobiologia, por exemplo, mas à ciência como conhecimento seguro, racionalmente sustentado.
Ser corrigido e assumir erros é um ato de bravura, mas sobretudo de benevolência e caridade
O mundo continuará sempre menor que a imagem refletida nas lentes de um microscópio e infinitamente maior que a imensidão do universo observada por um telescópio. O mundo é a totalidade. A arte de pensar é, em essência, a arte de perguntar e argumentar. Argumentar é justificar, mediante a razão e o diálogo, nosso conhecimento. Não apenas “ter opiniões” e “falar em público” nos faz livres e humanos, mas ser capaz de sustentá-las com clareza e rigor.
Mas o que isso tem a ver com a fé em Deus feito homem? Na experiência cristã, aprendemos a corrigir e averiguar, diante de uma comunidade moral de diálogo. Ser corrigido e assumir erros é um ato de bravura, mas sobretudo de benevolência e caridade.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos