Impressões na “Cueva de las Manos”, na Patagônia argentina.| Foto: Mariano/Wikimedia Commons/Domínio público
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No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus – assim abre João o seu belo Evangelho. No original grego, está registrado: “en archê ên o logos kai o logos ên próston theón kai theós ên o logos”. Desculpe o proselitismo teológico, mas há tanto aqui. Fiquei surpreso quando fiz um estudo deste Prólogo numa disciplina de Filosofia. Sim, há relação íntima entre Deus e Lógos. A fé cristã é, também, aquela capaz de trilhar os fundamentos da razão, de se justificar em argumentos. Sua força e liberdade residem aí.

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Em grego, “Palavra” se escreve Logos, um termo polissêmico que, entre outras coisas, também significa “discurso racional, pensamento, argumentação, razão”. Nos fundamentos da cristandade, além da fé, também há “Razão”. Não seria demais traduzir: “No princípio era a Razão”, que se fez homem. Jesus é Deus que se fez carne e habitou entre nós. Seria essa a esperança do Natal, a palavra viva de Deus Salvador que se fez primeiro menino? Deixemos de lado a religião. Gostaria de abordar um pouco mais as dimensões do pensamento.

Mais do que a razão, foi a imaginação que, primeiro, humanizou o animal humano

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O termo “logos” tem sentido muito amplo. Pensar a respeito dele nos coloca nas fronteiras de todo conhecimento e nas dimensões do próprio pensamento. Pois, quando a razão nasceu – não como menino na manjedoura – entre filósofos gregos, nasceu se diferenciando da narrativa mítica. Estabeleceu-se, assim, uma fronteira decisiva entre mito e razão. Dois tipos de palavras: a narrada e a argumentada, respectivamente.

No mito, a dimensão imagética é componente estruturante. Mais do que a razão, foi a imaginação que, primeiro, humanizou o animal humano, porque é da imaginação que surgem não só os mitos como narrativas literárias, mas fundamenta as primeiras respostas do homem diante da experiência dolorosa do sagrado.

Por isso, arte e religião ocuparam lugares centrais em toda a história humana. A primeira como expressão material e simbólica da segunda – que busca responder, com a força da experiência da narrativa sagrada, o porquê mais decisivo dos seres humanos, isto é, a consciência de nossa finitude que se lança como esperança de eternidade. Afinal, não seria esse o lugar ocupado pelas narrativas míticas? Não trato mito como tolice. Naturalistas consideram que só a ciência experimental é capaz de dar respostas a todas as perguntas humanas. Para que Homero se a gente tem Dawkins?

Mas nós precisamos superar as duas atitudes inibidoras do pensamento: a atitude autoritária/dogmática e a atitude relativista do vale qualquer coisa. Tradicionalistas dogmáticos e pós-modernos niilistas são, neste contexto, faces da mesma moeda.

Se há um mundo constituído por fatos, nem tudo é permitido, nem mesmo para o pensamento. Ou seja, podemos acessar a realidade e descobrir o que ocorre. Porém, narrativas ideológicas – entendidas aqui no sentido de um pensamento total presumido como verdadeiro antes do contato com a realidade – partem sempre de uma visão limitada e limitadora do mundo. As ideologias deformam a imagem do todo como o espelho trincado.

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Não é fácil suspender nossas opiniões ideológicas. Essa atitude deveria fundamentar nossas posturas críticas, que começam e terminam, constantemente, com a “coragem de fazer as boas perguntas”. Nos fundamentos da atitude crítica, assim, encontramos não só o lugar da filosofia, mas de toda atitude que se pretende científica. Vale ressaltar que não se trata de “ciência” no sentido de uma área específica. Não me refiro apenas à neurobiologia, por exemplo, mas à ciência como conhecimento seguro, racionalmente sustentado.

Ser corrigido e assumir erros é um ato de bravura, mas sobretudo de benevolência e caridade

O mundo continuará sempre menor que a imagem refletida nas lentes de um microscópio e infinitamente maior que a imensidão do universo observada por um telescópio. O mundo é a totalidade. A arte de pensar é, em essência, a arte de perguntar e argumentar. Argumentar é justificar, mediante a razão e o diálogo, nosso conhecimento. Não apenas “ter opiniões” e “falar em público” nos faz livres e humanos, mas ser capaz de sustentá-las com clareza e rigor.

Mas o que isso tem a ver com a fé em Deus feito homem? Na experiência cristã, aprendemos a corrigir e averiguar, diante de uma comunidade moral de diálogo. Ser corrigido e assumir erros é um ato de bravura, mas sobretudo de benevolência e caridade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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