A Catedral de Notre-Dame não é um museu, um mero prédio arquitetônico, um patrimônio da humanidade e muito menos um ponto turístico parisiense. Tudo bem, a gente pode afirmar tudo isso, porque afinal de contas ela também é tudo isso. Porém, ao reduzir a Catedral a um mero símbolo estético ou de façanhas da história, não dá para compreender a magnitude do incêndio de 15 de abril. Por exemplo, como entender porque, no exato momento em que escrevo este texto, centenas de franceses estão fazendo uma vigília de oração em frente à Catedral que pegou fogo no dia anterior. A desolação e as chamas de ontem foram vencidas por um senso de reverência, fé, solidariedade e ternura. É de emocionar — pena que não sou poeta.
Para se ter uma ideia da mobilização, uma campanha criada pelo presidente francês com o objeto de arrecadar fundos para reconstrução da catedral, em menos de 24 h depois do incêndio, conseguiu arrecadar mais de 2 bilhões de reais em doações (hoje já passa dos 3 bilhões). Um dos doares disse o seguinte: “essa tragédia atinge todo o povo da França e todos aqueles ligados a valores espirituais. Diante disso, desejamos trazer de volta essa joia de nossa herança o mais rápido possível”. Personalidades do mundo muçulmano exortaram muçulmanos franceses a ajudarem na reconstrução. Dalil Boubakeur, reitor da Grande Mesquita de Paris, disse que “Nobre-Dame é ‘templo de Deus’ e representa ‘’para os muçulmanos, o símbolo de Maria’”.
Para mim, está mais do que óbvio que eles não pretendem recuperar só um antigo monumento que sucumbiu em ruínas pela indiferença da modernidade. A Catedral de Notre-Dame continua viva. E para recorrer a Charles Baudelaire em um contexto um pouco diferente: “um templo onde vivos pilares deixam filtrar não raro insólitos enredos“.
É um pouco por causa dessas coisas que penso que não se pode reduzir Notre-Dame a museu, prédio arquitetônico, patrimônio da humanidade ou ponto turístico. Há outra razão importante, portanto: Notre-Dame é uma Igreja, templo vivo de esperança e fé na ressurreição de Cristo, cujo anúncio convida a todos a se unirem no Amor misericordioso de Deus. Diz Bento XVI sua Carta Encíclica: “Nós cremos no amor de Deus — deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”, pois “agora o amor já não é apenas um ‘mandamento’, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro”.
Por isso assistir à Notre-Dame de Paris ser consumida pelo fogo em plena Semana Santa é mais do que constatar um acidente, um incêndio de grandes proporções, uma tragédia contra a civilização ocidental. Não acho que se deva sair apressado condenando este ou aquele inimigo da civilização como se vivêssemos numa guerra. Primeiro e acima de tudo, há de se reconhecer o sentido salvífico, de natureza teológica e sagrada de um evento que nos lembra de nossa fragilidade e grandeza. Em resumo: o incêndio em Notre-Dame pode ser interpretado também como experiência profundamente religiosa, que pede silêncio e oração. Depois de Cristo ter morrido na Cruz, qualquer outro bode-expiratório é reduzido a uma tola e muitas vezes até perigosa superstição.
Quem melhor percebeu o que estou chamando de “sentido salvífico do incêndio” foi o filósofo Robert P. George, que em seu perfil no Twitter disse: “O fogo destrói. Contudo, o fogo também purifica e renova. Nossa fé e nossa civilização estão desesperadamente necessitadas de purificação e renovação”. Na sequência, completou: “Não se trata de minimizar o horror da destruição para perceber que o colapso daquilo que esse monumento representa é, na verdade, uma tragédia maior. Enfim, a verdadeira catedral é o coração do crente. Fé, esperança e caridade moram lá ou não moram em lugar nenhum”. Pegou-me de surpresa quando li pela primeira vez, confesso. Demorei para entender o que ele estava querendo dizer com “fogo que purifica e renova”.
Sem muitos exageros, gostaria de destacar que a tensão vivida é entre o material e o espiritual, entre o temporal e o eterno, entre a cidade dos homens e a cidade de Deus, entre a Cidade Luz e a Jerusalém Celeste. Porque se é disso o que se trata mesmo quando falamos de qualquer paróquia de bairro, quem dirá de Notre-Dame de Paris, a catedral gótica com mais de 800 anos de idade que testemunhou todas as tensões entre cristandade e mundo secular — os verdadeiros símbolos da França.
Se até ontem era glória de um tempo esquecido, hoje, em cinzas, voltou a ser o pequeno grão de mostarda que quer habitar o coração de cada um: O reino dos céus é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou no seu campo; o qual grão é, na verdade, a menor de todas as sementes, mas depois de crescido, é a maior das hortaliças e faz-se árvore, de tal modo que as aves do céu vêm pousar nos seus ramos.
Até reconheço que poderia ser um baita erro ver todas essas coisas pela perspectiva teológica, como se tudo fosse a representação de forças antagônicas de uma batalha cósmica entre o bem e o mal, entre luzes e trevas. Mas negar o caráter sagrado que Notre-Dame representa para todos os cristãos é esquecer uma verdade teológica substancial: não há mensagem salvífica de Cristo apenas para o ocidente. As cinzas de “Nossa Senhora de Paris” deveriam nos fazer lembrar e nos encher de esperança de que o Deus que morreu como trapo na cruz também ressuscitou para nos salvar.
Feliz Páscoa do Nosso Senhor.