Para quem se dispõe a crer e a pensar em Deus, a pergunta mais importante não é “Deus existe?”, mas “quem é Deus?”. Em filosofia, pelo contrário e numa certa ordem temática, as discussões sobre a existência e sobre o Ser antecedem a discussão sobre Deus. Quando discutimos filosoficamente temas como “existência”, “essência”, “realidade” e “Ser”, entramos no âmbito da metafísica, e não da teologia. Porém, no rigor dos termos, para o filósofo – e, talvez, muito menos para o crente – não faz mesmo sentido falar em “existência de Deus” como se fala da “existência de uma montanha” ou da “existência do meu cérebro”, da “existência desta mesa aqui, daquele copo ali” etc.
Nesse aspecto, para quem não está familiarizado com o debate filosófico, fica muito difícil essa conversa, já que, primeiro, precisamos começar com categorias filosóficas básicas para só depois chegar aos píncaros da reflexão e experiência teológica. De qualquer maneira, se há Deus, não se trata de um mero “algo” à disposição da mão e de nossas pretensões. Perguntas do tipo “quem causou/criou Deus?” são filosoficamente embaraçosas. Assim como são embaraçosas bravatas ateístas do tipo “Deus não existe!”. Porque Deus não pode mesmo estar sujeito às coisas finitas. Sua essência é o ser mesmo. Rigorosamente falando, Deus não “existe” ; Deus é.
Gosto muito do esforço que o filósofo Lorenz B. Puntel faz para mostrar que só faz sentido “tratar efetivamente da questão e dar a ela uma resposta racional em todos os seus aspectos em termos filosóficos se isso acontecer no quadro de uma concepção compreensiva da realidade ou do Ser como tal e em seu todo”. Já recomendei aqui o livro dele e faço questão de recomendar novamente. Leiam Ser e Deus, uma das obras mais rigorosas já escritas sobre a relação entre filosofia e Deus.
Rigorosamente falando, Deus não “existe” ; Deus é
No âmbito da teologia filosófica, ou seja, de uma fé que se propõe a pensar e de um pensamento que se alimenta da fé, uma das formulações mais importantes a respeito da natureza ou essência de Deus – se é que podemos nos expressar assim – é a de Tomás de Aquino. Na Summa contra os gentios ele escreve: “Em Deus há tudo o que constitui a subsistência, a essência ou o próprio Ser, pois lhe convém não ser em outro enquanto é subsistente, lhe convém ser algo determinado enquanto é essência, lhe convém ser ato em razão de seu próprio Ser”. Em resumo: Deus é “o ser mesmo subsistente em si” (ipsum esse in se subsistens).
Segundo o filósofo Emerich Coreth, em Deus no pensamento filosófico, a formulação de Tomás de Aquino diz respeito ao que é “necessário da plenitude originária e ilimitada de toda realidade e toda perfeição do ser”. Não se pode confundir alhos com bugalhos.
Quem gosta de estudar história da filosofia sabe que essa formulação de Tomás não se trata exatamente de uma novidade, mas das mais consistentes sínteses de uma tradição espiritual que começou com os gregos. Continua Coreth: “a ideia do Bem em Platão, o ato puro do motor imóvel em Aristóteles até o Uno dos neoplatônicos Plotino e Proclo enquanto plenitude transbordante em ser e perfeição”.
Soma-se a isso todo movimento promovido pela experiência da fé bíblica, pois somente a partir daí que a experiência de Deus passa ser compreendida como “plenitude do ser espiritual-pessoal com razão e sabedoria, liberdade e poder criador”. Deus como ipsum esse subsistens é o mais alto voo que as asas da razão filosófica e da fé alcançaram. Mas nada disso faz sentido se não vivermos a experiência pessoal, pois o Deus bíblico é Alguém. E, segundo a belíssima formulação do filósofo judeu Abraham Joshua Heschel, Deus é Alguém “em Busca do Homem”. Não à toa a razão desvinculada promove fanatismo e violência, por isso a importância do encontro entre mensagem bíblica e filosofia grega.
Como disse Bento XVI na sua Aula Magna da Universidade de Ratisbona, em setembro de 2006, “a convicção de que o agir contra a razão estaria em contradição com a natureza de Deus faz parte apenas do pensamento grego ou é válida sempre e por si mesma? Penso que, neste ponto, se manifesta a profunda concordância entre o que é grego na sua parte melhor e o que é a fé em Deus baseada na Bíblia”. Encontro que não foi uma “simples coincidência”, mas “há muito tempo que esta aproximação se tinha iniciado. Já na sarça ardente o nome misterioso de Deus – que O separa do conjunto das divindades com múltiplos nomes, afirmando d’Ele apenas ‘Eu sou’, o seu ser – apresenta-se, face ao mito, como uma contestação, que está em íntima analogia com a tentativa de Sócrates para vencer e superar precisamente o mito”.
A filosofia que havia superado a narrativa mítica encontrou uma experiência decisiva na fé bíblica. Não se trata de um Deus distante e indiferente ao sofrimento humano, mas um Deus que se revela na história, como logos. Continua Bento XVI: “Deus não se torna mais divino pelo fato de O afastarmos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e, como logos, agiu e age cheio de amor em nosso favor. Certamente o amor, como diz Paulo, ‘ultrapassa o conhecimento, sendo por isso capaz de apreender mais do que o simples pensamento’, mas aquele permanece o amor do Deus-Logos, motivo pelo qual o culto cristão, como afirma ainda Paulo, é “λογικη λατρεία” — um culto que está de acordo com o Verbo eterno e com a nossa razão”.
Em outras palavras, para a fé bíblica, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e o convida para ser parceiro da criação. Nesse sentido, é possível falar de uma relação entre Criador e criatura. Mas explorarei isso em outro texto. Na semana que vem gostaria de mostrar a diferença entre Deus da fé cristã e Deus da fé islâmica.