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Francisco Razzo

Francisco Razzo

O Deus da submissão e o Deus do amor

Antes de se converter ao cristianismo, Santo Agostinho era adepto da religião maniqueísta e acreditava que Deus não passava de uma massa luminosa estendida por todo o espaço, um Deus sujeito a ataques, corrupção e violação por outro poder divino rival responsável pelos tormentos e toda desgraça do mundo.

Por um bom tempo, o maniqueísmo fora concorrente do cristianismo. É uma religião salvífica e, como toda religião de salvação, busca oferecer respostas ao problema do sofrimento e do mal. Do ponto de vista intelectual, o maniqueísmo é bastante engenhoso, mas suspende a possibilidade de que o mal seja fruto da liberdade e da vontade humana.

O maniqueísmo está fundamentado em um dualismo que compreende o mundo visível e corpóreo como reino das trevas. Nesse caso, a conclusão para a vida ética é que não faz mais sentido falar em liberdade e responsabilidade. Mani, seu profeta e fundador, nasceu em Ctesifonte, capital do império sassânida, o último dos impérios persas até a chegada do islamismo, no século 7.º. Hoje, Ctesifonte pertence ao Iraque e a religião concorrente do cristianismo já não é mais o maniqueísmo.

O problema do sofrimento não está em um poder divino concorrente ao poder de Deus, mas no Pecado Original

Após sua conversão, Santo Agostinho passou a compreender que o verdadeiro Deus é incorpóreo, infinito, imutável, incorruptível e fonte de todas as coisas que existem. Não há poder rival concorrente. Deus é um e soberano e livre. O homem, por ser criado à sua imagem e semelhança, é dotado de intelecto e vontade livre. No caso do cristianismo, o problema do mal foi resolvido com a ideia de que não há “mal”, mas privação de ser e livre arbítrio. O problema do sofrimento não está em um poder divino concorrente ao poder de Deus, mas no Pecado Original.

Agostinho relatou essa mudança de concepção no livro 7 das Confissões: “com o coração pesado, sem consciência clara de mim mesmo, considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão por determinado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados. As formas percorridas por meus olhos eram os moldes das imagens pelas quais andava meu espírito”.

Porém, continua Agostinho, “assim conjeturava eu, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minha conjectura era falsa”. Ou seja, Deus não pode ser uma “massa luminosa estendida por todo espaço” e sujeito a ataques de um outro poder divino fonte do mal.

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Como diz Etienne Gilson num importante livro dedicado a Santo Agostinho (Introdução ao estudo de Santo Agostinho): “O primeiro passo na via que conduz a Deus é a aceitação da revelação pela fé”. Mas o cristianismo não é a única religião baseada na fé e na revelação de Deus. Como sabemos, judaísmo e islamismo também o são. Por enquanto, gostaria de esboçar alguns pontos de distinção entre cristianismo e islamismo.

Tanto no cristianismo como no islamismo, que nasceria também como uma religião da lei e do livro, Deus é criador de todas as coisas e de cada indivíduo. Ele está para além dessas coisas criadas e não se sujeita a nada. Deus é onipotência e o homem não é capaz de compreender. No caso do Islã, essa característica é fundamental. No caso da fé cristã, o poder soberano de Deus é Amor.

No coração dessas duas religiões está a noção de Revelação, que significa que toda iniciativa de conhecimento de Deus não parte do homem, mas do próprio Deus, cuja vontade era ser conhecido e adorado. No coração das duas grandes religiões, a vontade de Deus está inscrita em um livro: a Bíblia para os cristãos, o Alcorão para os mulçumanos. Eles anunciam salvação e vida eterna para os que creem.

Deus é onipotência e o homem não é capaz de compreender. No caso do Islã, essa característica é fundamental. No caso da fé cristã, o poder soberano de Deus é Amor

E o que significa a fé, a não ser a aceitação de que nossa natureza, devido ao pecado original, contém a possibilidade do mal? Por isso, no cristianismo, a redenção não depende exclusivamente da iniciativa humana, mas partiu do próprio Deus, que, na pessoa de Cristo, encarnou na história e morreu pregado na cruz para expiação dos nossos pecados.

Portanto, para o cristão, a fé significa aceitar a redenção por intermédio de Jesus Cristo. A crucificação e a ressurreição são momentos históricos decisivos. Não há esse momento para o Islã. Para um muçulmano, como explica Christine Schirrmacher em Entenda o Islã, “Jesus não foi crucificado e não ressuscitou. A crucificação teria sido uma derrota humilhante para Jesus. Mesmo que ele tivesse morrido na cruz, não poderia ter trazido redenção à humanidade”.

No caso do cristianismo, o pecado sempre está dirigido contra Deus e é Deus que toma a iniciativa da salvação por meio da graça. No Islã, o homem peca, primeiro, contra a si mesmo. No cristianismo, pelo contrário, a morte da cruz era a realização crucial da própria vontade de Deus para remissão dos pecados.

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Para os cristãos, a Sagrada Escritura não é bem um livro, mas uma biblioteca escrita por inúmeras personalidades ao longo da história do povo de Deus. O livro é a narrativa da história desse povo, com todos os seus altos e baixos. Por isso, cada livro no interior das Escrituras é marcado pela personalidade histórica de cada autor. Ler Jó é diferente de ler as Cartas de Paulo; ler o Êxodo não é como ler Ato dos Apóstolos. Ler Levítico não é como ler os Evangelhos.

No caso do Alcorão não é assim. Todo o livro foi revelado diretamente a Maomé pelo anjo Gabriel. Pouco importa a personalidade e o momento histórico em que viveu Maomé, pois no Alcorão temos a palavra inalterada de Alá, a palavra que, segundo a crença dos muçulmanos, corrige o Antigo e o Novo Testamento.

Outro detalhe decisivo e irreconciliável para muçulmanos e cristãos é a ideia de Trindade. Para os primeiros, Alá é tão absoluto, uno e soberano, que a ideia de “ter filhos” não faz o menor sentido. Nesse caso, Deus como Trindade só pode ser concebido e condenado como politeísmo, o pior de todos os pecados no Islã, tão grave que nem sequer pode ser perdoado.

No cristianismo, pelo contrário, a Trindade é um dos mistérios centrais da fé. Com a noção de Trindade, a revelação cristã é entendida não como um ato de obediência e submissão, mas um ato de amor em um Deus pessoal cujo rosto não se esconde do homem.

Voltarei a esse assunto em próximos textos.

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