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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

O Jesus que fala muito de liberdade e justiça social, mas não de perdão

(Foto: Unsplash)

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Todo ano é a mesma coisa: todos querem pintar um Jesus à sua imagem e semelhança, um Jesus para chamar de 'seu'. Até acho divertido acompanhar o 'Natal' pelas redes sociais. À medida que se aproxima, a face de Cristo se torna um espelho das diversas ideologias. Neste contexto, a apropriação de Cristo é um ato de fé, pois quem o faz não está preocupado com a dimensão redentora do anúncio do reino de Deus. Trata-se, ao contrário, de uma disputa política sustentada por um grau elevado de imaginação e hipocrisia.

Há muitos Cristos circulando por aí. Cristo LGBT, Cristo palestino e Cristo mulher preta e pobre. Enfim, há Cristo para todas as identidades. Para ser preciso, as políticas identitárias desconfiguram e adaptam Jesus para a identidade conveniente com a narrativa.

O jornalista e cientistas político Leonardo Sakamoto foi bem imaginativo em sua retórica. Em sua conta no X, ele escreveu o seguinte:

“Feliz Natal: Se Jesus voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não é levada a sério), voltaria uma mulher negra. E andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou em seu tempo, seria humilhada, xingada, surrada, alfinetada e explodida. Ela seria chamada de mendiga e de sem-teto vagabunda, olhada como operária subversiva, alcunhada como agressora da família e dos bons costumes, violentada e estuprada, rechaçada na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamada nas redes sociais, censurada pela Justiça. Teria seu barraco queimado e toda sua vida transformada em cinzas em uma reintegração de posse. Seria finalizada como comunista, linchada num poste pela população em nome da fé e das tradições. Receberia socos e pontapés dos hoje autointitulados sacerdotes do Templo. Supostos representantes dos interesses de Deus na Terra que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem o privilégio de vomitarem seu ódio diante daquilo que acham que pode ameaçar seu controle sobre o povo. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Instagram. Ou faria uma dancinha para o TikTok. Quando defendi isso pela primeira vez, há uns dez anos, na minha coluna, quase apanhei na rua. Era um momento em que o ódio saía do armário e se preparava para fazer um presidente”

E vejam que curioso, no jornal a Folha de São Paulo, Ana Cristina Rosa, que é jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública, com apelo retórico um pouco mais sutil, escreveu algo muito parecido:

“Passados 2.023 anos do nascimento do homem de Nazaré, o quanto aprendemos com as lições do profeta que defendeu os oprimidos e desprezados pela sociedade, pregou a solidariedade, o amor ao próximo e promoveu uma revolução que deu origem ao cristianismo, a religião mais difundida no planeta? Quais as implicações cotidianas entre a representação eurocêntrica de Jesus e a afirmação teológica de que "os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus"? Por que um judeu nascido no Oriente Médio, uma região afro-asiática, é retratado para a humanidade com olhos azuis e cabelos loiros? Será que um Deus negro seria amado sobre todas as coisas num mundo racista e preconceituoso?”

Quando leio tais textos, busco não me escandalizar e parto do seguinte princípio: se eles estão no erro, a caridade hermenêutica é um dever de todo intérprete.

Há três problemas que eu gostaria de destacar. O primeiro tem a ver com uma impostura dos autores. O fato é o seguinte, eles se colocam numa posição, ou seja, num lugar de fala, que é quase impossível receberam críticas. Afinal, quem ousaria criticar uma reflexão tão tensa e cheia de amor como essa só pode ser racista e destilar ódio. Se eu falo da perspectiva do amor e você critica o que eu falo, você fala da perspectiva do ódio. Se eu falo da perspectiva dos oprimidos, e você critica o que eu falo, você só pode ser opressor com medo de perder os seus privilégios. É um tipo de reflexão que está imune à crítica.

O segundo problema é um pouco mais complicado, pois se refere ao quadro de referência teórica dos autores. Aqui, a teoria subjacente a ambos enfatiza a necessidade de compreender e criticar as estruturas sociais e culturais que perpetuam um regime de opressão. Eles não conseguem ver o mundo de outro modo exceto como uma luta permanente entre opressores e oprimidos. Dentro deste quadro teórico, são onipresentes os aspectos como a representação cultural, a interseccionalidade das lutas sociais (raça, gênero, classe) e a crítica às ideologias dominantes. Não tem a ver com fé e anúncio do Reino de Deus, mas com a mais pura manifestação de uma mentalidade presa às dinâmicas das lutas sociais advindas da teoria crítica contemporânea.

O último e mais importante problema tem a ver com a nova religião que eles anunciam. Bruno Mori, um querido amigo presbiteriano, foi no ponto:

“O Jesus deles é outro. As Escrituras deles são outras. É um Jesus que não é o Verbo Encarnado, a segunda pessoa da Trindade, nascido sem pecado e que veio ao mundo para morrer pelos nossos pecados. O Jesus deles se encarna em toda figura oprimida: negros, gays, pobres, etc. Desafia toda figura de autoridade. Só é um Jesus que nunca confronta o pecado do nosso coração. Até porque, nessa ‘teologia’, o mal nunca está no coração do indivíduo, mas na posição que a pessoa ocupa na Estrutura Social. Ironicamente, é um Jesus que fala muito de liberdade, mas não de perdão. Fala muito de Justiça e Misericórdia, mas não oferece solução real, somente a esperança de uma futura mudança na sociedade. É um Jesus que nunca conversaria com Nicodemos ou Zaqueu. Que não se sentaria à mesa com Levi. Que não pode dizer "Vá e não peques mais" a mulher adúltera. Ele vai estar mais preocupado promovendo campanha de cancelamento contra os fariseus. Curiosamente, esse Jesus não é só menos divino, mas menos humano. É muito mais um herói trágico, no sentido nietzschiano, do que um mártir cristão. É um Jesus que se encarna ao ponto de se tornar pecador. Que morre na cruz como símbolo da injustiça do mundo, mas não da maldade do coração humano. E, no final, tragicamente, não ressuscita. Ele não tem poder pra ressuscitar. Vai viver sempre como ideia, encarnada novamente em cada grupo oprimido. O mito do eterno retorno. Um Jesus que é um avatar divino, preso no eterno ciclo da dança da morte da Deusa Kali”.

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