O corpo morto brutalizado no meio da rua. Marcas da fúria cravavam o veredicto da multidão enfurecida. A cena, espalhada pelo insaciável apetite das redes sociais, exibia o espetáculo de um linchamento: um homem acusado de violar sexualmente e assassinar uma criança de dois anos, subjugado pelo ritual feroz da vingança. O linchamento é um fenômeno impactante. Ele sacia em nós o desejo de purificar e corrigir. Sempre me interessei por esse tipo de manifestação popular. Ele revela algo da natureza social humana.
O crime que originou essa fúria coletiva era o próprio horror. A imagem da infância profanada, esmagada pela brutalidade de um predador, acorda o instinto mais primitivo de reparação social. O linchamento não é um ato de violência descontrolada da multidão. É uma tentativa de extirpar o mal, de purificar a comunidade pela destruição do elemento corrompido. A vítima de tudo isso ainda é uma criança. Pior ainda, portanto, o linchamento expõe a ausência de confiança nas instituições de justiça. Não porque as instituições brasileiras não funcionam adequadamente (o ministro Barroso não é parâmetro para o caso). A multidão assumiu o papel de carrasco e sacerdote. O processo legal tem um limite.
O sociólogo José de Souza Martins, em seu estudo sobre os linchamentos no Brasil, nos lembra que o linchamento não é um fenômeno novo. É, ao contrário, um resquício dos tempos primitivos, quando a justiça era exercida na praça pública e não nos tribunais togados. Na verdade, linchamento não pode ser reduzido à expressão de “justiça popular”. Ele é menos um ato de correção e mais um ritual de expiação. O corpo do linchado não pertence mais a si mesmo. Ele é o bode expiatório de uma sociedade incapaz de confiar na própria lei, já que o horror do crime não cabe nos limites da lei. As instituições não bastam. O tribunal e todo aparado gramatical do juridiquês não satisfazem o que a população evoca.
O linchamento expõe a ausência de confiança nas instituições de justiça
Nesse sentido, a violência coletiva, antes de ser um meio de punição, é o ato soberano da reafirmação do poder popular. Não é mundano – pensa o justiceiro. A cada soco e chute, a multidão se reconhece como força legítima de algo muito maior, pois deve substituir as frágeis engrenagens da burocracia estatal por um veredicto instantâneo e absoluto.
As imagens desses rituais, hoje espalhadas como troféus em redes sociais, denunciam o fracasso do Estado e, além disso, reafirmam um desejo mais primitivo do ser humano. O linchamento, afinal, é a tentativa de restaurar mais do que a justiça perdida. Ele revela a falência irreversível da civilização doente, do apodrecimento da humanidade. Linchamentos revelam a fome insaciável por uma vingança que se multiplica, se reinventa e se perpetua.
O episódio do linchamento também gera um dilema a respeito do processo legal, da possibilidade de um acusado se defender. Sei que é difícil falar em defesa no caso do homem que estuprou e matou uma criança de dois anos. Qual especialista em direito ousaria dar um veredito justo? Aqui, talvez, hesito em dúvidas. Pena de morte? Sou covarde demais para bater o martelo.
Há algo de profundamente trágico nessa disposição humana para a justiça improvisada. O linchamento não nasce da verdade. Nasce do medo da presença do mal do mundo. Quem assiste às imagens do homem espancado até a morte pode sentir, por um instante, uma certa satisfação enraizada em nossa natureza. O problema é que essa fúria não sacia. Um linchamento sempre pede outro e outro e outro. O ciclo é interminável. O sangue derramado nunca é suficiente para apaziguar a histeria coletiva e, a cada novo caso de violência, a justificativa parece mais inevitável. Porém, aquele caso específico teve um desfecho. O que ele significa?
Se bem sincero, ou seja, separando minha razão do meu desejo, penso o seguinte: Permitir que a violência popular substitua a lei é a rendição completa ao caos. Se a lei falha, é preciso reconstruí-la, não a substituir pela selvageria. A barbárie não corrige injustiças; apenas as multiplica. O desejo de vingança pode parecer justificável, porém sua execução destrói os próprios alicerces de uma sociedade minimamente organizada.
No fim, restam apenas os estilhaços: um cadáver estendido no asfalto, uma comunidade embriagada por seu próprio desespero e um sistema de justiça cada vez mais doente. Os linchadores voltam para casa convencidos de sua nobreza. A linha que separa o verdugo da vítima é tênue. A pergunta que fica é sempre a mesma: quando a multidão descobrirá que seu apetite nunca poderá ser saciado? O linchamento é a confissão de um fracasso coletivo. Ele não redime. Lembra-nos do que sempre fomos: lobos à espera do próximo sacrifício. Um vagar em círculos dentro da nossa própria sombra.
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