O uso excessivo de figuras de linguagem deteriora a própria linguagem política. E o maior problema de a linguagem ser deteriorada é se tornar autorreferente, ou seja, já não dizer mais nada a respeito do mundo; tornando-se, assim, todas as relações humanas suscetíveis à tirania – primeiro a do relativismo, depois a do poder. Platão anteviu este como sendo o principal problema da democracia ateniense fundamentada totalmente na arte retórica. Justiça é saber quem manda.
Darei um exemplo da literatura para ilustrar. Em Alice através do espelho, clássico de Lewis Carroll, há um personagem chamado Humpty Dumpty, um estranho ovo falante metido a filólogo e com linguajar todo esquisito sobre o sentido dos termos. Por exemplo, ele acredita que nomes próprios devem significar conceitos gerais, enquanto a palavras de uso comum ele dá o sentido que bem entende, independentemente de o interlocutor concordar ou não.
É com o poder de mudar arbitrariamente o significado dos nomes que nasce toda tentação da tirania
Na discussão a respeito de um nome próprio significar alguma coisa específica, ele diz para Alice:
“Não fique tagarelando consigo mesma desse jeito”, disse Humpty Dumpty, olhando para ela pela primeira vez, “mas me diga seu nome e seu negócio”.
“Meu nome é Alice, mas...”
“É um nome bem estúpido!” Humpty Dumpty interrompeu com impaciência. “O que significa?”
“Um nome precisa significar alguma coisa?”, Alice perguntou incrédula.
“Claro que precisa!”, Humpty Dumpty disse com uma curta risada. “Meu nome significa a forma que eu tenho, e é uma forma bem bonita também. Com um nome como o seu, você poderia ter qualquer forma, quase.”
Genial. Seria assim: meu nome “Francisco” significa “Francês”, de Franco. No entanto, eu tenho origem italiana. Meu sobrenome em italiano, “Razzo”, significa, literalmente, “ogiva” ou “foguete”, portanto eu deveria ter, tal como Humpty Dumpty tem o formato de ovo, a forma de um “Foguete Francês”. “João” vem de jovem; “Pedro”, de pedra. “João Pedro” seria a “pedra jovem”.
Ora, como questiona Alice, incrédula com a discussão, um nome próprio, isto é, o nome específico referente a alguém, não precisa ter um significado específico para definir o que a pessoa é e muito menos a forma que essa pessoa tem. Se “Alice” não significa nada, a pequena personagem Alice poderia significar qualquer coisa? Ele não teria uma forma, portanto o nome é estúpido.
Esta discussão atravesse a literatura e a filosofia, de Shakespeare a Umberto Eco. Em Shakespeare, o eterno clássico, na famosa cena do balcão no Ato II de Romeu e Julieta, aparece uma conversa acerca dos significados do nome que dará pano pra manga para filósofos e linguistas; refere-se à querela dos universais, que dividirá o mundo entre realistas e nominalistas.
“Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu? Renega o pai, despoja-te do nome; ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens, porque uma Capuleto deixarei de ser logo.”
“Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.”
Lembro-me aqui do livro O Nome da Rosa. Então, ao contrário da tese de Humpty Dumpty, nesta cena shakespeariana o nome próprio não tem significado referente à forma, pouco importam os nomes “Romeu Montecchio” e “Julieta Capuleto”, pois é a experiência amorosa desses jovens o que define, neste contexto, o que eles são. Não a entidade geral chamada “rosa” ou “amor”, mas o estado espiritual deles.
Contudo, em Alice através do espelho, a discussão mais importante não para por aqui. O ponto mais perigoso da tese de Humpty Dumpty diz respeito ao seguinte: como são atribuídos os significados aos conceitos gerais? Quem define o que são “justiça”, “bem” e “ciência”, por exemplo? Porque é com o poder de mudar arbitrariamente o significado dos nomes que nasce toda tentação da tirania.
O exercício político, antes de ser exercício de poder, é expressão da linguagem; diríamos hoje: de narrativa
Na sequência do diálogo de Alice com o ovo enigmático, surge uma discussão sobre o sentido do termo “glória”.
“Não sei o que você quer dizer com ‘glória’”, Alice disse.
Humpty Dumpty sorriu com desdém.
“É óbvio que não sabe... até que eu lhe diga. Eu quis dizer: ‘Há um belo argumento infalível para você!’’”
“Mas ‘glória’ não significa ‘um belo argumento infalível’”, Alice objetou.
“Quando uso uma palavra”, Humpty Dumpty disse com certo desprezo, “ela significa o que eu quiser que ela signifique... Nem mais nem menos.”
“A questão é”, disse Alice, “se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”
“A questão é”, disse Humpty Dumpty, “quem manda... E eis tudo.”
Não se trata aqui de um mero preciosismo filosófico. Gostaria de deixar claro o problema da deterioração da linguagem: o exercício político, antes de ser exercício de poder, é expressão da linguagem; diríamos hoje: de narrativa. Se a lógica do discurso político fosse autorreferente, tudo seria permitido. Nesse sentido, a política não seria outra coisa a não ser puro jogo de poder, enquanto puro jogo de força. E eis tudo. Eis a eficácia do método Humpty Dumpty, eis a verdadeira natureza da tirania.