No fim da minha graduação em Filosofia, eu estava entusiasmado com a ideia de escrever um romance de formação (Bildungsroman) que contasse a trágica história de um jovem que largou o conforto da vidinha burguesa para se tornar um militante comunista. Eu tinha o título e o esboço de um primeiro capítulo. Gostaria de compartilhar com vocês. O título do livro seria Naufrágios no porto – uma expressão que tirei de um dicionário de expressões latinas há muitos anos. O livro seria dividido em quatro grandes partes: consciência; formação, revolução; e, por fim, catástrofe. Só esbocei o que seria o primeiro capítulo da primeira parte: “a tomada de consciência: um jovem ansioso”:
A escolha de um novo nome, ou melhor, de um pseudônimo, parece nunca ser feita completamente por acaso, há sempre uma estranha inquietação daquilo que alimenta a estratégia, muitas vezes milimetricamente planejada, de assumir outra identidade. Evidentemente, nem sempre quando se adota um novo nome se está negando a si mesmo, apesar do nome ser essa armação permanente revestida pela couraça mutável da aparência, negá-lo ou substitui-lo não necessariamente marca o ponto de partida de uma revolta ou de uma nova jornada. Há pessoas que gostam apenas de brincar com a sua personalidade, outras que não suportam a si mesmas, e acreditam que adotar este ou aquele nome, de fato, fará alguma diferença, como se a consequência imediata fosse mudar alguma coisa naquilo que realmente é, como se ao trocar essas pequenas sílabas, que nos acompanham por toda a vida, alguma coisa em sua natureza realmente mudasse.
Há pessoas que não se suportam. E mudar o nome é uma forma de tentar se livrar do peso de si mesmas
Nome e identidade são quase sinônimos, mas apenas quase, já que um nome traz apenas o vestígio de alguma coisa além do que o mero composto sonoro; um nome desperta a memória de uma história íntima apenas porque associa intimidade àquele som ou grafia que se repete ao longo da vida e pelo qual somos chamados. Não é a substituição do nome que vai mudar alguma coisa, a mudança já ocorreu muito antes na interioridade; adotar um novo nome é apenas como se adotássemos uma máscara nova, com isso cria-se a falsa impressão de que somos senhores de nós mesmos, de que temos algum poder sobre nós mesmos e sobre o mundo, mas é apenas uma mera impressão, nada além de máscaras.
Há pessoas que não se suportam. E mudar o nome é uma forma de tentar se livrar do peso de si mesmas; uma maneira ingênua, como se pudéssemos fugir daquilo que realmente somos, como se a mudança de nome resultasse na mudança da essência, da natureza mais íntima e permanente de nós mesmos. Incrível, pois as pessoas que geralmente fazem isso, ou fizeram ao longo dá história revolucionária, morreram como mártires justamente pelo fato de negarem qualquer possibilidade de essências, de natureza humana permanente, morreram como mártires por afirmar a verdade pelo avesso, pois pregavam que o real na verdade não era o real, mas alguma coisa que vive em eterna mudança, nada na natureza é permanente e tudo que se estabelece como tal, como estrutura constante é ilusão, falsificação, cegueira. Quando nos odiamos, a realidade toda se torna um peso insuportável. Há uma necessidade radical de mudança, e a primeira delas é, apesar de ingênua, a convicta crença de que ao mudar o próprio nome muda-se realmente alguma coisa íntima em nós mesmos. Não há como negar o heroísmo pueril que sustenta essa mentalidade revolucionária. Como se nossa história, isso que consistentemente faz com que sejamos o que somos, fosse facilmente substituível, manipulável, como se a realidade e toda natureza fossem massa de modelar e apenas disposta a ser manipulada. Para uns a crença nisso é tão forte que é necessário negar a si mesmo como sinal de que irá começar alguma coisa nova, melhorada, conformada com a indignação de não ser mais o que se é. E toda essa conclusão, na verdade, se acredita prefácio de uma nova vida, de uma nova descoberta, de um novo batismo, mas um batismo laico, não de entrega, mas de revolta, não de amor a si mesmo, mas de repulsa a tudo que se foi um dia, não de compreensão e conhecimento de si mesmo, mas a marca inicial de um longo conflito, de uma longa tragédia, enfim, de uma jornada que só poderia ter um único desfecho: não levar a lugar algum.
Vladimir Ilyich Ulianov é um nome de significado, de peso histórico, não é a mera escolha casual de um pseudônimo, não se adota esse nome sem saber exatamente o que se quer. Ainda que haja uma inspiração romantizada, atmosfera impetuosa de um jovem ansioso, isso jamais poderia, e moralmente nem deveria, ser filha do acaso. Vladimir só tinha dezessete anos quando acreditou encontrar o que realmente procurava, e na madrugada em que encontrou, disse entusiasmadamente para si mesmo: “A partir de hoje um novo horizonte, a batalha verdadeiramente vitoriosa começou, esse é para mim meu verdadeiro batismo, morte de tudo o aquilo que um dia foi covarde, submisso, fraco e mesquinho...”. E, depois de lançar um longo olhar profundo e silencioso sobre si mesmo, completou: “estou verdadeiramente pronto para lutar, ou seja, para morrer!” Tudo tem um começo apenas para servir como uma referência, uma vez que a raiz das motivações é sempre mais complexa do que imaginamos, um ponto de partida é sempre mais insólito do que se acredita. Enfim, não basta procurar entender as coisas a partir deste ou daquele momento específico em que uma verdade se estabeleceu. Não há verdades. Há sempre a necessidade de ir mais fundo, investigar tudo aquilo que, em pequenas doses de contingência, um dia retorceu sutilmente o olhar, buscar compreender não apenas momentos bruscos, mas o sopro amorfo do cotidiano amargo e trivial; não obstante, no caso de Vladimir tudo se tornou mais complexo, uma vez que tudo está recheado de crenças bem articuladas e ódios realmente verdadeiros, de uma rigidez monástica, uma seriedade glacial e cadavérica, nenhuma escolha que não atravessa o prisma de uma genialidade ansiosa, ardente e vertiginosamente melancólica, nada nesse garoto parece morrer no soslaio de um sorriso banal, como na maioria dos jovens que apenas dizem “Pode ser, está bom assim! Fazer o quê?...” mas que por dentro queimam de frustração e inveja.
Os nomes podem até mudar, mas aquilo que rege efetivamente as coisas deve obedecer às leis imutáveis. Apesar de ele obstinadamente negar tudo que diz respeito à imutabilidade, sua natureza o leva bem mais além do que suas convicções. O ano em que Vladimir tomou consciência daquilo que ele realmente não era, quando compreendeu o que não suportava mais em si mesmo, todas as leis passaram a ser governadas por uma única ideia: o campo de batalha. Era óbvio pra ele que o mundo é a mais intensa expressão do combate, e passou a ser mais óbvio ainda o que precisava ser feito, porque realmente havia muita coisa a ser feita. Há nisso tudo uma crença pessoalmente muito verdadeira de que seu destino estava em jogo, de que seu compromisso com aquilo que estava por vir não era algo simplesmente regional, localizado em um compromisso qualquer, existem pessoas que não se contenta com o banal, apesar da banalidade constrangedora que é se achar responsável por alguma coisa maior do que a si próprio, acreditar fatalmente de que a culpa do mundo expia quando se passa a acreditar na justiça do mundo. Na sua vertiginosa descoberta, Vladimir acreditava que as injustiças do mundo dependessem do que ele tinha para dizer, era nítido para ele que a lógica do mundo devastava qualquer possibilidade de autorrealização. Isso em um adulto é patético, mas para um jovem brilhante, promessa, expectativa, convicção genuína de que as coisas não seriam mais as mesmas e de agora em diante nada mais proporcionaria conforto. A revolução é o fim...
Quem sabe um dia não retomo meu projeto. Pelo menos um rumo ao personagem eu gostaria de dar: por experiência amarga, ele descobre o fracasso revolucionário e se converte à religião de seus pais, assim reabilita seu nome de batismo: Cristóvão.
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