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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

O militante e o niilista

Max von Sydow (em primeiro plano) no papel de Antonius Block em "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman.
Max von Sydow (em primeiro plano) no papel de Antonius Block em "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman. (Foto: Reprodução)

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O ateísmo é um posicionamento existencial diante da crença na existência em Deus. Há tantas formas de ateísmo quanto há ateus. Diferentemente do que muita gente pensa, o ateísmo não é simplesmente a ausência na crença em Deus. Portanto, trata-se também de uma crença. Afinal, se não fosse o conflito de crenças fundamentais, cada um viveria trancafiado dentro de sua própria visão de mundo.

Mais do que uma mera teoria acerca da origem e o destino do mundo, o ateísmo também se expressa como um modo de vida e, por isso, tem uma dimensão existencial, uma ética, um sonho de Estado e sociedade perfeita e um final para a história.

O fato é que ninguém vive uma vida sem uma visão de mundo. Se negarmos a crença na existência de Deus é porque temos a crença na existência de uma outra realidade tão definitiva e fundamental quanto o equivalente valor de Deus para um santo. Nesse caso, é preciso colocar alguma outra crença no lugar de Deus: o Progresso; a História; o Dinheiro; a Ideologia...

O ateísmo também se expressa como um modo de vida e, por isso, tem uma dimensão existencial, uma ética, um sonho de Estado e sociedade perfeita e um final para a história

De qualquer forma, se o ateísmo pode ser compreendido como uma postura existencial diante da vida, pelo menos ele deverá assumir duas formas distintas: a primeira, o ateísmo militante; a segundo, o ateísmo niilista. Obviamente, entre essas duas, há muitas variáveis.

Sobre o ateísmo militante pode ser dizer o seguinte: a religião é a fonte de todo mal no mundo; elimina-se a religião, logo se tem “o paraíso” na Terra. Só a ciência natural pode salvar, libertar e trazer progresso para os seres humanos. Fora dos limites da ciência natural, qualquer outra visão de mundo está errada.

O fundamento desse tipo de ateísmo está na estima que o ateu militante tem acerca de si mesmo e das conquistas científicas. Para um ateu militante, quem não é ateu só pode ser burro. Uma postura obviamente dogmática, típica de ativistas que nunca duvidam de si mesmos.

Como disse Michel Novak certa vez a respeito desse tipo de ateísmo, o ateu militante “nunca levantou qualquer dúvida sobre a correção de seu próprio ateísmo”. Portanto, não há discussão com quem não se coloca a si mesmo como um problema. A fraqueza de todo militante é a de nunca duvidar de si mesmo, da autoridade da ciência, do desenvolvimento progressista da história.

Por outro lado, há o ateísmo niilista. Para mim, o niilismo é a forma mais séria e tentadora de ateísmo. Para um niilista, a vida não tem sentido. E qualquer busca de sentido não passa de uma vã pretensão provinciana. Essa concepção é bastante fatalista e certamente a mais realista. E, por isso, os ateus niilistas geralmente são tratados como pessimistas. Respeito os pessimistas.

Afinal, um ateu niilista compartilha alguns traços a respeito do drama humano com certas correntes tradicionais de cristianismo: a insuficiência da natureza humana, a disfunção cognitiva, nossa miséria existencial e a profunda experiência de contingência e absurdidade da verdade da vida. Em resumo: o mundo não tem significado.

O niilismo é a forma mais séria e tentadora de ateísmo. Para um niilista, a vida não tem sentido. E qualquer busca de sentido não passa de uma vã pretensão provinciana

O ateu niilista experimenta, tal como o cristão deveria também experimentar, a ideia de que participamos de um drama cósmico sem nenhuma solução possível. No caso do cristão, a resposta última é Deus; já a resposta do niilista é a de que não há possibilidade de respostas últimas. Tudo é nada. O universo é fruto do acaso e o acaso rege cada detalhe da nossa medíocre tentativa de produzir alguma coisa que tenha significado.

Do ponto de vista epistemológico o conhecimento é, por natureza, limitado, regional e falível. Só existe um problema verdadeiramente sério para o ateu niilista: responder se a vida vale ou não a pena ser vivida.

O que torna a vida humana significativa? Nada! Não há para o ateu niilista uma resposta possível para tal pergunta. Apenas tateamos possíveis sombras. Clamamos por uma vida significativa e a única resposta é o silêncio abissal do universo sem sentido.

Um exemplo claro de experiência que vivencia o ateu niilista é a cena da confissão do Antonius Block no filme O Sétimo Selo, de Bergman. Diz o personagem em sua confissão para a Morte, com quem joga xadrez: “Meu coração é vazio. O vazio é um espelho. Eu vejo meu rosto... Eu vivo agora em um mundo de fantasmas, um prisioneiro em meus sonhos. Eu quero que Deus ponha sua mão e mostre seu rosto, fale comigo. Mas ele é mudo. Eu choro para ele no escuro, mas parece não ter ninguém lá”. A morte responde: “Talvez não tenha ninguém lá”. Ora, se assim for, diz Antonius Block, “vida é um terror sem sentido. Nenhum homem pode viver com a Morte e saber que tudo é nada... Devemos fazer de nosso medo um ídolo… e chamá-lo de Deus”.

O ateu niilista fez do seu vazio um ídolo e o batizou de “o nada”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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