A Justiça na “Alegoria do Bom Governo”, de Ambrogio Lorenzetti.| Foto: Wikimedia Commons
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No seu Discurso ao Parlamento alemão, em setembro de 2011, o então papa Bento XVI definia, em poucas, mas tão incisivas palavras, a natureza da política e, a partir disso, traçava o critério para identificar a tirania como essência da antipolítica: “A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz”. A tirania seria o compromisso em prol do poder, criando assim as condições de fundo para a violência – sempre legitimada com o inequívoco compromisso com o povo.

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Sendo assim, o sucesso de um político deveria ser medido quando subordina seu poder à objetiva realidade da justiça, e não subordina a justiça à arbitrariedade de seu poder. Mas como saber distinguir o justo do injusto?

Mesmo com o coração dominado pelas melhores das intenções, a ação política não se torna justa simplesmente porque o político tem o poder ilimitado de decretá-la como tal. É exatamente o oposto: o político só tem o poder em virtude da realidade objetiva da justiça. Ora, mas o que é a justiça? Uma coisa é certa: não é justo porque o político ordena; ele deve ordenar porque é justo. Nem mesmo Deus, se assim desejasse, poderia criar um triângulo com dois lados. Suas Leis emanam, portanto, não de Sua Soberana Vontade, mas de Sua Absoluta Sabedoria e Bondade. Para a fé cristã, a essência de Deus não é Poder, mas Amor. Fé não é submissão política, mas liberdade interior.

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Como sugere Bento XVI: “naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma ação política efetiva; mas o sucesso há de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência do direito” (destaques são meus). A virtude política não está subordinada à mera boa vontade do político no poder, uma vez que “o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim a estrada à falsificação do direito, à destruição da justiça”.

Recorrendo à famosa sentença de Santo Agostinho, em Cidade de Deus, acerca da definição do poder político encarnado no Estado – que obedece à lógica do corrompido amor sui –, o papa chamava a atenção para o fato de que “se se põe de lado o direito (o justo), em que se distingue então o Estado de uma grande quadrilha de bandidos?” E concluía, apresentando, assim, uma nítida e intransponível diferença entre o político e o tirano:

Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentamos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se uma quadrilha de bandidos muito bem organizada, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político.

Com essas reflexões, Bento XVI resgata toda uma tradição filosófica que busca o fundamento da política na metafísica – aqui entendida como teoria da realidade – e não no exercício da vontade.

Na República, o famoso diálogo sobre a justiça, cujo tema é também a crise na polis como expressão da crise da alma, Platão enfrentou o desafio proposto por Trasímico de que a justiça não passaria da conveniência do mais forte. Trasímico é ardiloso sofista. Ele representa a alta intelectualidade política da época que Platão retrata no Livro I da República como aquele a desafiar Sócrates, sua verdadeira antítese, para cuja filosofia moral-política vale o preceito – um tanto otimista para minha mais agostiniana da política – de que ninguém erra voluntariamente. De qualquer forma, também é de Sócrates o profundo senso de que é preferível sofrer uma injustiça do que praticá-la.

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O que é justiça? No diálogo com Sócrates, Trasímico radicaliza a definição ao colocar a justiça apenas no terreno do “realismo político” – entendida aqui como terreno exclusivo da realidade do poder enquanto expressão da vontade do mais forte (realismo que só será retomado e aperfeiçoado com Maquiavel mil anos depois).

O perturbador desafio de Trasímico pode ser definido nos seguintes termos: “justiça é o conjunto de normas e de vínculos que quem detém o poder impõe a seus súditos, com o objetivo da manutenção do próprio poder”, como resume o historiador da filosofia Mario Vegetti. Se justiça é só o exercício e a manutenção do poder, objeta Sócrates, “não pode haver qualquer sociedade, nem sequer uma sociedade de predadores e de ladrões”.

Com efeito, é sempre necessário um “mínimo de consentimento em torno de normas de ‘justiça’ comuns e compartilhadas” – uma “comunidade moral de bandidos” seria um contrassenso. Caso contrário, justiça não passaria de um nome vazio para fazer a relação de submissão e obediência parecer a conquista da liberdade. Afinal, a servidão voluntária dos devotos colaboradores não seria o sonho de todo tirano? Nada como ser livre para obedecer e colaborar.

Enfim, a trágica morte de Sócrates escancarou como a violência política é também inerente à democracia e de que o compromisso com a “vontade do povo” nem sempre realiza o justo, sobretudo quando sofistas (o termo “sophistès” pode ser traduzido literalmente por “especialistas”) – para lembrar de 1984 de George Orwell – fazem a guerra parecer paz, a liberdade parecer escravidão, a ignorância parecer força e a tirania se passar por política.