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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Educação

O problema do Enem não é a ideologia

Detalhe de "São João em Patmos" (século 15). (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Assim que a prova de Ciências Humanas e Linguagens do Enem foi disponibilizada, corri para analisar algumas questões. Isso não se deve apenas ao fato de ser professor de Filosofia e Sociologia, mas também ao meu genuíno interesse pelo conteúdo ideológico desse tipo de prova. Não sou daqueles que acreditam que questões devam ser anuladas devido ao seu viés ideológico, como foi o caso de alguns itens relacionados ao agronegócio. Pelo contrário, defendo uma abordagem crítica sem recorrer ao poder do Legislativo. Não há nada no Enem que deva ser anulado, embora seja necessário debatê-lo e analisá-lo constantemente. A democracia e as redes sociais estão aí para isso.

Na verdade, o que me incomoda no Enem não é o perfil ideológico da prova, mas sim a qualidade dos textos. Nesse sentido, analisar o conteúdo da prova do Enem equivale mais a diagnosticar o estado lamentável de nossa educação.

Um exemplo realmente me saltou aos olhos. Foi a questão 41 da prova de linguagem. Peço a paciência do leitor para lê-la por inteiro.

O que me incomoda no Enem não é o perfil ideológico da prova, mas sim a qualidade dos textos

“No princípio era o verbo. A frase que abre o primeiro capítulo do Evangelho de João e remete à criação do mundo, assim como também faz o Gênesis, é a mais famosa da Bíblia. A ideia de que o mundo é criado pela palavra, porém, é tão estruturante que está presente em outras religiões, para muito além das fundadas no cristianismo.

Como humanos, a linguagem é o mundo que habitamos. Basta tentar imaginar um mundo em que não podemos usar palavras para dizer de nós e dos outros para compreender o que isso significa. Ou um mundo em que aquilo que você diz não é entendido pelo outro, e o que o outro diz não é entendido por você. 

O que acontece então quando a palavra é destruída e, com ela, a linguagem? 

Durante séculos, em diferentes sociedades e línguas, é importante lembrar, a linguagem serviu – e ainda serve – para manter privilégios de grupos de poder e deixar todos os outros de fora. Quem entende linguagem de advogados, juízes e promotores, linguagem de médicos, linguagem de burocratas, linguagem de cientistas? A maior parte da população foi submetida à violência de propositalmente ser impedida de compreender a linguagem daqueles que determinam seus destinos. 

Se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento. Mesmo que ele seja cheio de gritos entre aqueles que já não têm linguagem comum para compreender uns aos outros. 

BRUM, E. Disponível em: https://brasil.elpais.com. Acesso em: 5 nov. 2021. 

Nesse texto, a estratégia usada para convencer o leitor de que uma grande parcela da população não compreende a linguagem daqueles que detêm o poder foi 

a) revelar a origem religiosa da linguagem. 
b) questionar o temor sobre o futuro da linguagem. 
c) descrever a relação entre sociedade e linguagem 
d) apresentar as consequências do esfacelamento da linguagem. 
e) criticar o obstáculo promovido pelos usos especializados da linguagem.”

Não há necessidade de perder tempo tentando respondê-la, o gabarito é a letra “e” – criticar o obstáculo promovido pelos usos especializados da linguagem.

O texto que serve como referência é da escritora e jornalista Eliane Brum, ganhadora de vários prêmios literários, inclusive o Jabuti. Não vejo problema nenhum se Eliane tem um “perfil ideológico”. O texto que ela escreve e serviu de base para a questão se chama O rompimento do mundo dos humanos: Como a apreensão religiosa da realidade destrói a linguagem e ameaça o enfrentamento de nossa própria extinção. O problema do texto é que ele é ruim, principalmente ao interpretar o Prólogo do Evangelho de São João. Por exemplo, quando ela escreve que “No princípio era o verbo. A frase que abre o primeiro capítulo do Evangelho de João e remete à criação do mundo, assim como também faz o Gênesis, é a mais famosa da Bíblia. A ideia de que o mundo é criado pela palavra, porém, é tão estruturante que está presente em outras religiões, para muito além das fundadas no cristianismo” e infere, sem qualquer fundamentação crítica, que “Se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento”.

Primeiro, os quatro evangelhos, inclusive o de João, apresentam as palavras e os gestos de Jesus como pano de fundo principal. Neste sentido, não se pode conceber uma análise do Prólogo sem estar ciente da dimensão cristológica do texto. No texto do quarto Evangelho, Jesus é referenciado como “Logos” e, consequentemente, como Cristo. No Prólogo de João, o termo grego Logos é usado para descrever Jesus Cristo como a segunda Pessoa da Trindade, que estava com Deus e era Deus. No entanto, Logos possui um significado mais amplo do que simplesmente se referir à criação do mundo, como sugere a autora. Na filosofia grega, especialmente na tradição estoica, com origens lá em Heráclito, Logos representava a razão cósmica, a ordem divina que governava o universo. Portanto, o uso de Logos em João não é uma mera alusão à criação, mas sim uma afirmação teológica profunda sobre a divindade de Jesus.

Não vejo problema nenhum se Eliane Brum tem um “perfil ideológico”. O problema do seu texto é que ele é ruim, principalmente ao interpretar o Prólogo do Evangelho de São João

É importante reconhecer que o autor do Evangelho de João estava imerso em um contexto cultural helenístico, no qual um vocábulo filosófico, como Logos, era bem conhecido. Ao usar esse termo, o autor estava fazendo uma afirmação cristológica que ressoava com a compreensão filosófica de sua época. Portanto, não podemos simplificar a associação entre Logos e criação, e muito menos Logos como “silenciamento”, no sentido de fazer uma crítica àquilo que ela considera um “obstáculo promovido pelos usos especializados da linguagem por parte daqueles que detêm o poder”.

O problema desse tipo de questão não é ideológico, como eu disse, mas a mais pura expressão de ignorância a respeito do básico de história da filosofia e de teologia. Trata-se da manifestação de um sintoma a respeito da qualidade da classe pensante desse país. Curioso é que o título do texto de Eliane Brum se refere a “como a apreensão religiosa da realidade destrói a linguagem e ameaça o enfrentamento de nossa própria extinção”, mas ela mesma não faz qualquer esforço para entender a linguagem da religião que pretende criticar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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