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Certamente você já ouviu falar de O Processo, de Franz Kafka. Eu gostaria de analisar apenas um trechinho e lançar observações a respeito de uma absurda situação brasileira. Não direi qual é a situação, de propósito. É um desafio, caro leitor:

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“Como posso estar detido? E deste modo?”

“Lá vem o senhor de novo”, disse o guarda, mergulhando um pão com manteiga no potinho de mel. “Não respondemos a perguntas como essa.”

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“Terão de responder”, disse K. “Aqui estão os meus documentos de identidade, agora mostrem os seus, sobretudo a ordem de detenção.”

“Oh, céus!”, disse o guarda. “É incrível como o senhor não consegue se submeter à sua situação e parece empenhado em nos irritar inutilmente, a nós, que decerto somos neste momento os mais próximos de todos os seus semelhantes!”

“É isso mesmo, acredite”, disse Franz sem levar à boca a xícara de café que mantinha na mão, mas fitando K. com um olhar longo, provavelmente cheio de sentido, embora incompreensível. K. se envolveu sem querer num diálogo de olhares com Franz, mas depois bateu nos seus papéis e disse:

“Aqui estão os meus documentos de identidade.”

“Que importância eles têm para nós?”, bradou então o guarda grande. “O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer acabar logo com seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários subalternos que mal conhecem um documento de identidade e que não têm outra coisa a ver com o seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia, sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a despeito disso somos capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas. Esta é a lei. Onde aí haveria erro?”

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“Essa lei eu não conheço”, disse K.

“Tanto pior para o senhor”, disse o guarda.

“Ela só existe nas suas cabeças”, disse K., querendo de alguma maneira se infiltrar nos pensamentos dos guardas, revertê-los em seu favor ou neles se instalar.

Mas o guarda, num tom de rejeição, disse apenas:

“O senhor irá senti-la.”

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Franz se intrometeu e disse:

“Veja, Willem, ele admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente.”

“Você tem toda razão, mas não se pode fazê-lo entender nada”, disse o outro.

A atitude submissa e conformista dos guardas contrasta com a persistência e a busca por respostas de K., o que pode ser interpretado como uma representação do confronto entre o indivíduo e o autoritarismo burocrático que o oprime

O diálogo entre K. e os guardas reflete a alienação, a impotência e a incompreensão do indivíduo diante de uma autoridade inacessível e desumana. Não há razão para detê-lo e mesmo assim... há um sistema, há leis, há uma democracia para proteger.

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Notem a linguagem ambígua e evasiva dos guardas, que respondem de maneira obscura e não dão informações claras sobre a detenção de K, que está sendo detido e não pode saber os motivos. Os guardas cumprem a ordem judicial. No começo, o absurdo da situação parece uma brincadeira, como aquelas pegadinhas com câmeras escondidas.

Toda vez que K. faz perguntas, os guardas debocham dele: “Lá vem o senhor de novo”; “Oh, céus! É incrível como o senhor não consegue se submeter à sua situação e parece empenhado em nos irritar inutilmente”; “É isso mesmo, acredite”. Todas essas frases são ditas num ambiente que reforça a indiferença alienante e burocrática dos guardas. Elas revelam a atmosfera de impotência do personagem diante da autoridade do sistema.

Vocês terão de ler O Processo para saber o desfecho da história. No caso do Brasil, nós sabemos o que um juiz da suprema corte, sozinho, é capaz de fazer contra um indivíduo, antes mesmo de ele poder fazer suas perguntas

Enquanto o guarda debocha de K., um deles “mergulha um pão com manteiga no potinho de mel”. Franz, um dos guardas, “sem levar à boca a xícara de café que mantinha na mão, fita K. com um olhar longo, provavelmente cheio de sentido, embora incompreensível”. A habilidade de Kafka em descrever o olhar “provavelmente cheio de sentido, embora incompreensível” sugere que há algo oculto e inacessível em toda esta situação. O que seria? Há certas coisas que não precisam ser ditas, ficam nas entrelinhas.

A atitude submissa e conformista dos guardas contrasta com a persistência e a busca por respostas de K., o que pode ser interpretado como uma representação do confronto entre o indivíduo e o autoritarismo burocrático que o oprime. K. tenta obter uma explicação acerca das razões de sua detenção, mas é tratado como uma criança. Parece aquela frase típica entre nós brasileiros, bem retratada pelo antropólogo Roberto DaMatta: “Você sabe com quem está falando?”

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“O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer acabar logo com seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem de detenção?”

Talvez o juiz do caso multe K. por desobediência. Não sei. Vocês terão de ler o romance para saber o desfecho. No caso do Brasil, nós sabemos o que um juiz da suprema corte, sozinho, é capaz de fazer contra um indivíduo, antes mesmo de ele poder fazer suas perguntas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]