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Cada vez mais estou convencido do potencial estético e pedagógico de alguns jogos de videogame. Não escondo de ninguém o meu entusiasmo por alguns jogos que poderiam ser tranquilamente qualificados como verdadeiras obras de arte. Ghost of Tsushima é um desses jogos. O cenário é espetacular; as cenas de batalha são empolgantes e muito bem construídas; o enredo, épico.
Lançado em julho de 2020 com exclusividade para o PlayStation 4, da Sony, Ghost of Tsushima conta a história da primeira invasão mongol no Japão no século 13 na perspectiva da jornada do guerreiro samurai Jin Sakai. O objetivo do protagonista é lutar pela liberdade da ilha de Tsushima.
No entanto, mais do que um mero jogo de guerra, Ghost of Tsushima trata da batalha interior que Jin Sakai travará consigo mesmo para usar técnicas de guerrilha contra os mongóis. Para isso, ele terá de trilhar uma jornada de aprendizado que o habilite a matar Khotûn Khan, o líder mongol. Trata-se da jornada do Fantasma, a lenda em torno do qual o nome de Jin vai sendo identificado.
Quais limites podemos ultrapassar quando estamos em guerra?
Jin deve usar todos os meios necessários para combater, resistir e expulsar os mongóis? A pergunta não é tão simples. A rigidez do código samurai não permite trocar a luta honrada, cujo imperativo moral é categórico, por todos os meios necessários. Jin entrará em conflito com seu tio e mestre, Lord Shimura. A relação de Jin com Lord Shimura é, para mim, o verdadeiro drama pedagógico do jogo.
Depois que o pai de Jin morreu, Lord Shimura assumiu o treinamento dele no caminho samurai. No jogo, os flashbacks desse período da vida de Jin são, além de bonitos, muito instrutivos moralmente falando. Lord Shimura é, nesse sentido, a bússola moral das escolhas de Jin, e acontece que ele é categoricamente contra a guerra de guerrilha (guerra irregular, táticas de terrorismo etc.) adotada pelo jovem samurai, seu pupilo.
Quais limites podemos ultrapassar quando estamos em guerra? Jin ultrapassará todos os limites. O Fantasma será o terror para os inimigos; mas, por outro lado, libertação e esperança para os amigos. O que estamos dispostos a fazer para travar uma guerra de libertação? Estar em guerra, antes de tudo, dirão os medievais, é “pôr seu corpo em aventura de morte”.
Embora possa parecer estranho, os teóricos da guerra buscarão definições. A guerra não é vale-tudo. Alberico Gentilis dirá que a guerra é o conflito armado, público e justo. Clausewitz, na definição clássica, diz que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. No caso da ilha de Tsushima, dominada pelas forças tirânicas de Khotûn Khan, não há mais política, ou seja, não há mais possibilidade de uma guerra como instrumento racional de política nacional, pública e justa.
A decisão de Jin é fazer o que for necessário para salvar o tio capturado e libertar a ilha dos inimigos. Não se mobiliza mais sustentado pelo código de honra. O que precisa ser feito deve ser feito. A luta de Jin não é matar o inimigo a partir de um código moral, mas destruir qualquer impedimento moral para simplesmente estar disposto a morrer para matar um inimigo.
Khotûn Khan ainda é capaz de oferecer paz desde que todos ali se submetam ao seu domínio. Um tirano é sempre um homem pacífico; violentos são os outros. Quanto mais avançamos no enredo de Ghost of Tsushima, mais os códigos de conduta moral da guerra são superados a ponto de Jin se tornar um espelho de seus inimigos. Não à toa chega a usar uma armadura mongol e comenta: “imagina o que meu tio diria se me visse vestido assim?”.
Jin tem consciência dos limites que precisa ultrapassar e do preço que está disposto a pagar por se tornar o temível Fantasma. Ele sofre com isso, medita, compõe Haiku. Contudo, é preciso superar a ética cavalheiresca e usar de todos os meios necessários. A afirmação de si mesmo como guerreiro samurai entra em contradição com os métodos. Para vencer o domínio mongol, Jin se transforma numa máquina de matar. Seu tio, Lord Shimura, se recusa a acompanhá-lo nessa jornada.
A guerra já não é mais experimentada como um desafio de justiça a si mesmo e aos outros. Numa certa altura do jogo, o duelo de cavalheiros é substituído pelo prazer de envenenar, queimar ou simplesmente decapitar os inimigos. Sim, é empolgante fazer isso; quase catártico. Quase não há esperança pelo triunfo do guerreiro samurai descobrindo a si mesmo; mas apenas o desejo de aniquilar, uma vitória que só será obtida pela destruição absoluta do outro.
Felizmente o jogo não termina aí; ele, na verdade, nos ensina que até o mais virtuoso dos heróis pode sucumbir no domínio do desejo cego de vingança e destruição.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos