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Francisco Razzo

Francisco Razzo

O que pensam os terraplanistas?

(Foto: Reprodução)

Eu responderia “nada”. Por caridade, vou dar um crédito. Mas antes gostaria de dizer o seguinte: não há debate com quem duvida do formato da Terra. Embora não seja perfeita, a Terra é esférica. Lembro-me das aulas do parquinho: a Terra tem o formato de uma laranja. Tecnicamente, geoide – formato quase esférico com irregularidades e com as extremidades achatadas. Uma beleza. Basta meio eclipse da Lua para confirmar a delicadeza das curvas do nosso Pálido Ponto Azul, para usar uma expressão de Carl Sagan.

Hoje, em pleno século 21, depois de 2,5 mil anos de filosofia e impressionantes descobertas científicas, qualquer tentativa de lançar dúvidas sobre isso não passa de perversão da linguagem. Essas pessoas que duvidam do formato da Terra devem ser objeto de estudos e motivo de chacota; porém jamais devem ser tratadas como interlocutoras ou ser aceitas para um debate. Imperativo categórico: Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal. Máxima da minha ação: Não se deve debater com terraplanistas.

O fato é que não há nada científico nos questionamentos e dúvidas lançados por terraplanistas, pois não se trata de ciência. Pelo contrário, é anticientífico. Contudo, o que me interessa nesse movimento é a capacidade criativa para teorias conspiratórias. Ou, simplesmente, como eles dominam a arte de intoxicar o espaço do debate público. Fico fascinado com os limites da imaginação. Na verdade, falta de limites e nadinha de pudor. O que pode ser perigoso. Vai que daqui a pouco o Escola Sem Partido abraça a causa e comece a exigir que nas aulas de Física o professor trate da “hipótese”. Não duvido...

Não à toa no sistema de crenças de um terraplanista encontramos dúvidas sobre vacinas, aquecimento global, globalismo e todo tipo de maluquice conspiratória

Em geral, levados as últimas consequências, os questionamentos dos terraplanistas colocam em “xeque” boa parte das conquistas científicas. Para eles, é como se todos nós fôssemos marionetes vivendo dentro de um Show de Truman. Eles, e só eles, descobriram uma grande verdade: o “sistema” e seus cúmplices (a Nasa é um deles) não medem esforços para controlar a mente da população. Todo o conhecimento científico faz parte dessa “família” de manipuladores cujo desejo não é outro senão o de controle das massas. Afinal, só ingênuos acreditam que a Terra é um globo.

Não à toa no sistema de crenças de um terraplanista encontramos dúvidas sobre vacinas, aquecimento global, globalismo e todo tipo de maluquice conspiratória. Passe um dia no canal do YouTube de um deles. Prometo que é diversão garantida.

De qualquer forma, recomendo o documentário A Terra é plana (Behind the curve), dirigido e produzido por Daniel J. Clark – antes de me perguntarem, já aviso: tem no Netflix. Nesse documentário você descobre que o que realmente anima os terraplanistas, ou pelo menos seus principais defensores, não é bem o amor pela verdade, mas o amor pela fama. Eles gostam mesmo é de curtidas, milhares de seguidores no Facebook e inscritos no canal do YouTube. Não estão interessados em submeter suas teses ao escrutínio da comunidade científica. O amadorismo epistemológico de seus experimentos chega a dar desespero e tirar um sorriso de tão constrangedor. Como é possível acreditarem nisso?

Todos os maiores pensadores católicos medievais assumiam a forma esférica como realidade dada

Muitas vezes eu penso que tem a ver com a sensação de estar participando de algo muito importante e revelador. Essa sensação de ser alguém importante, que revela um segredo, que é respeitado por outras pessoas sem precisar ter muitos méritos, deve ser pior que crack, de tão viciante.

Esses dias ouvi uma garota defensora dessas maluquices todas dizendo o seguinte: “A ideia de falar que a Terra é um globo, criar essa ilusão ou mentir para a população que a Terra é o que não é, tira a necessidade de Deus. Porque Deus, todas as religiões – islamismo, judaísmo e cristianismo – falam que a Terra é plana. Então, se você chegar e falar: ‘mas a Terra é um globo’, você já elimina a questão religiosa, o que Deus está falando. É muito mais fácil ter um mundo ateísta quando a Terra é um globo, do que quando a Terra é oficialmente reconhecida por ser plana.”

Não há nada científico nos questionamentos e dúvidas lançados por terraplanistas, pois não se trata de ciência

Isso é tão absurdo! Nenhum cristão sério defendeu uma bobagem dessas. Pelo menos desde Pitágoras, seguido por Aristóteles, Euclides e Aristarco, Leukippos e Demócrito, Eratóstenes e Ptolomeu, a esfericidade da Terra era aceita. Para se ter uma ideia rápida do assunto e sua relação com o cristianismo, nenhum filósofo católico de relevo na história levantou qualquer dúvida a respeito do formato da Terra. Não é dogma da Igreja, e a Bíblia não é um livro de ciências naturais. Todos os maiores pensadores católicos assumiam a forma esférica como realidade dada. Não à toa a Idade Média tardia produziu autores da envergadura de Jean Buridan, Nicole d'Oresme, Roger Bacon, Nicolau de Cusa – para citar alguns.

O historiador Jeffrey B. Russell publicou um livro muito bom chamado O mito da Terra plana. Ele demonstra como essa ideia foi uma invenção do século 19 e não uma crença levada a sério por cristãos. Ele demonstra que “ninguém antes de 1830 acreditava que os medievais criam em uma Terra plana”. A ideia da Terra plana “foi estabelecida, quase contemporaneamente, por um francês e um americano” com objetivo de desautorizar os religiosos.

Ou seja, dois sujeitos criaram o mito da Terra plana para ridicularizar cristãos. Na época, o debate girava em torno do darwinismo e do criacionismo. Segundo Russell, “o argumento é simples e poderoso, se não elegante: ‘Olhe como esses cristãos são estúpidos. Eles estão sempre no caminho da ciência e do progresso. Esse pessoal que nega a evolução hoje é da mesma laia daquelas pessoas idiotas que, por pelo menos mil anos, negaram que a Terra era redonda. Quão estúpido você pode ser? ’ ”

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