Na era digital, o que escrevemos nas redes pode até ser apagado, mas o print é eterno. Em 2014, ao saber da candidatura de Jair Bolsonaro, fui um dos primeiros a duvidar que isso seria possível. Não só duvidei, como cheguei a declarar que jamais votaria nele. A roda da fortuna gira. Ele ganhou e votei nele. Guiei-me pela intuição e pelo antipetismo. Olhando para o passado, pelo menos descobri que, como analista político, sou um ótimo jogador de Metal Gear. Para o bom entendedor, entre Maquiavel e Platão, fico com Platão. Ou, parafraseando Hegel, fingir que as minhas verdades são a noite em que “todos os gatos são pardos”. Resolvi fuçar o que escrevi e fiz um apanhado geral de alguns posts que publiquei sobre Jair Bolsonaro. Segue a retrospectiva:
26 de abril de 2014: “se Bolsonaro candidatar-se à Presidência não votarei nele, nem tudo (ou todos?) neste vasto e novo mundo de ‘direita e conservadorismo’ me representa. Talvez os meus netos venham a conhecer um candidato genuinamente conservador, por enquanto esbanjamos caricatura. Conservadores do mundo, desuni-vos!” — o erro aqui foi simples: medir o conservadorismo por lentes acadêmicas demais e esquecer daquela sabedoria espontânea e imensurável do mundo da vida. Eu deveria ter perguntando antes para minha querida mãe, que não errou as previsões de que um dia Lula estaria preso.
Olhando a partir de 30 de outubro de 2018, Bolsonaro representou uma ruptura entre a classe pensante e o povo. Por isso levarei uma lição de vida: o povão sabe mais de Brasil do que a vã pretensão de quaisquer especialistas de esquerda ou direita. Noutros termos: por maiores que sejam as ideias de Brasil, esse país não cabe na cabeça de ninguém. Acho que nem Olavo de Carvalho, em 2014, esperava que fosse Jair Bolsonaro o representante político de suas ideias filosóficas. Nessa época, era impossível prever que a “nova direita” que hoje chega ao poder estivesse sendo moldada pelas simplificações ideológicas de Olavo de Carvalho. É preciso checar se realmente havia um projeto de poder quando Olavo, em 2009, propôs criar uma nova casta pensante e não uma casta política. Porque, pelo jeito — e aqui vale benefício da dúvida —, substituiu-se uma casta de esquerda pela outra, de direita. Afinal, o poder é sempre uma tentação…
No dia 27 de abril: “Na atual conjuntura do cenário político, o lançamento da candidatura de Jair Bolsonaro só demonstra o despreparo estratégico da ‘nova direita’, vamos dizer, mais ‘radical’. Se há um objetivo comum: tirar o PT do poder, certamente não será com o lançamento, às pressas, de um candidato como Bolsonaro. Só no Brasil um partido chamado Progressista lança um candidato considerado o extremo do conservadorismo”. Pausa. Respira. Sigamos em frente.
“A mídia vai ignorá-lo complemente, sua figura pública será retratada como uma espécie de Tiririca da ‘nova direita’. A autocompreensão que a direita conservadora tem de si não é a mesma que a mídia pinta dessa mesma direita. No mundo real da política [enquanto luta adversidade amigo-inimigo], a direita é retratada como o emblema máximo do retrocesso. A ‘nova direita’ pode fazer barulho nas redes sociais, mas ainda é bastante inexpressiva nos grandes meios de comunicação”. Minha aposta foi ignorar a força das redes socias. Quem apostou — como o PSDB — que o tempo de televisão faria a diferença errou feio. Um pretenso intelectual como eu erra e pronto. Já o PSDB corre o risco de sumir.
Essa parte do post considero a mais importante e é autoexplicativa: “Disso, segue que Bolsonaro não terá a quantidade de votos para sequer ganhar da Soninha Francine. Ninguém da esquerda votará nele. Então, Bolsonaro está para a direita o que Plínio de Arruda Sampaio estava para esquerda nas eleições passadas. Servirá para tirar votos daqueles candidatos que teriam uma chance de derrotar o PT. Talvez, Bolsonaro ganharia apoio do setor evangélico da sociedade, mas tal apoio não será suficientemente consolidado para formar uma massa de votos contra o PT. Servirá apenas para dividir mais ainda a ‘direita’. Usar a figura do Bolsonaro como um ‘mal menor’ diante da ‘ameaça comunista’ é criar um espantalho a fim de justificar a escolha. Isso só vai dividir a possibilidade real de oposição ao PT. De um lado, a candidatura de Bolsonaro agrada os incautos cordeiros desesperados, por outro só fortalece as ardilosas raposas políticas. A política é a arte do possível, às vezes é preciso meditá-lo num prazo bem mais longo do que o desespero momentâneo”. Mordi a língua.
29 de abril: “Meu problema com a candidatura do Bolsonaro é bem mais complicado do que uma mera luta da ‘coragem’ e ‘despojamento’ contra ‘as forças que não são mais ocultas da ameaça comunista’. Expressei isso em três linhas sarcásticas noutro dia que deixaram alguns dos colegas de ‘direita’ enfurecidos sabe-se lá com o quê (aliás, essa fúria demonstra minha tese: nós, da ‘nova direita’, precisamos de muita autocrítica — e psicanálise). Opinião sincera, achismo mesmo — sem qualquer síntese genuinamente dialética adquirida com a mais excelsa luz da sabedoria filosófica desse país —, a candidatura do Bolsonaro evidencia o completo despreparo político da visão que a ‘nova direita’, em geral, forjou de si mesma. Falta autoavaliação crítica dos próprios alicerces pelos próprios ‘direitistas’ (incluo-me nisso) do que significa o ‘ressurgimento’ da direita no país e a constituição de um novo mundo”. Pausa. Respira. Sigamos em frente.
“Um projeto político não emerge do dia para a noite, mas é construído por gerações. O político atualiza um fato que já estava consumado há muito tempo numa forma mental. Se é a forma mental do totalitarismo, instauramos uma ditadura totalitária; se é a forma mental conservadora, teremos uma política de viés conservador; se é liberal, liberais seremos; e por aí vai. Pessoalmente não faço a distinção que me imputam: entre a elevada vida dos intelectuais e a massa de manobra caracterizada pela vida da massa. Não distingo pessoas em classes, coletivos ou grupos. Pelo contrário, defendo o oposto disso e vejo com extrema suspeita a necessidade de uma liderança que expresse e unifique o desejo coletivo, isto é, a figura que personifique o ímpeto de um grupo, seja lá qual ele for. Também estamos sujeitos às paixões violentas e passivamente cedemos aos impulsos irracionais”.
Reconhecidas as contradições, temores e excesso de zelo à parte, o fato é que ninguém em 2014, depois da derrota do Aécio nas urnas, poderia prever o impeachment da Dilma e a Lava Jato. Foram dois fatos que mudaram os rumos da história. É interessante rever escritos a partir da percepções e expectativas. A realidade é sempre maior do que o que se passa no mundo como ideia. Às vezes, a realidade engana, e Maquiavel abre o sorriso.