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Considero a legislação brasileira sobre o aborto bastante razoável. Ao mesmo tempo em que protege a dignidade do nascituro desde o momento da concepção, o direito brasileiro reconhece alguns casos em que a ilicitude precisa ser excluída.
Cabe uma precisão terminológica aqui: no debate público, aborto significa o direito de uma mulher, em posse de suas faculdades cognitivas, interromper a gravidez segundo os critérios de sua vontade. Portanto, uma decisão moral com inúmeras consequências psicológicas, clínicas, sociais, legais e até espirituais.
Nesse sentido, com exceção do caso de anencefalia, que considero controverso, nos casos de estupro e risco de vida da mãe, a legislação brasileira consegue harmonizar dois direitos fundamentais: vida e liberdade, e tudo isso sem cair na armadilha da arbitrariedade a respeito de quando a vida de uma pessoa em condição intrauterina começa. Ora, o legislador, como representante da sociedade civil, entende que começa na concepção, e por isso merece todo respeito moral e proteção legal. Mas há casos difíceis, que envolvem grandes dilemas. A legislação não olha para esses casos com a letra fria da lei.
A mulher, ao descobrir que está grávida, sabe, com a força mais incisiva de sua experiência humana, que esta grávida de um filho e não de uma mera entidade biológica
A concepção consiste em critério objetivo que compreende um fato antropológico básico: a dignidade não é um benefício dado por uma comunidade política, mas a realidade inerente a todas as pessoas. De alguma forma, um embrião já participa da comunidade moral do reino dos fins e estabelece relações intersubjetivas.
A mulher, ao descobrir que está grávida, sabe, com a força mais incisiva de sua experiência humana, que esta grávida de um filho e não de uma mera entidade biológica. Está grávida de alguém, não de uma coisa. Se vai amar ou odiar o filho, se vai acolhê-lo no seio de seu amor ou desprezá-lo na indiferença de seu egoísmo, se assumirá o compromisso materno com virtude ou medo, tudo isso será irrelevante como fundamento do fato de que desde a concepção já se é alguém e não uma coisa qualquer.
A despeito do que muito ativista precipitado julga, a filosofia não se acastela em um mundo das ideias; as contradições da realidade, sobretudo da realidade humana, constituem a matéria prima mais genuína da experiência filosófica.
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Discutir o tema do aborto, ou seja, ser capaz de dar razões, segundo os critérios da argumentação pública, de que o aborto não deveria ser praticado, não significa ataques condenatórios a quem pensa em praticar ou praticou o aborto. Uma mulher que abortou ou pensou em abortar certamente precisa de acolhimento e não de linchamento público.
Agora, imaginem a família de uma criança de 10 anos, cuja gravidez foi fruto de violência sexual praticada pelo tio. Confesso que tenho dificuldade em tratar esse caso específico como um caso para reaquecer o debate sobre o aborto. Nesse sentido, é lamentável que ativistas favoráveis e contrários ao aborto tenham usado a tragédia dessa menina para fins ideológicos. O tribunal dos bárbaros e as víboras do oportunismo não perdoam.
Se as leis brasileiras sobre aborto com relação a estupro e risco de vida da mãe já existem, usar a tragédia de uma criança para pautar a discussão do aborto, num país que não só regula (com o excludente de ilicitude) como inclusive fornece o procedimento pelo SUS para esses casos, é realmente assombroso. Cheguei a ver gente comemorando este aborto (de um feto com 22 semanas!) como uma vitória e tratando o médico, responsável pela cirurgia, como herói.
É lamentável que ativistas favoráveis e contrários ao aborto tenham usado a tragédia da menina do Espírito Santo para fins ideológicos
Por outro lado, ativistas contrários ao aborto não perderam a oportunidade. A situação dessa garota já é tragédia em todos os sentidos, mas os oportunistas precisam de mais: eles precisavam tumultuar a porta do hospital e mostrar para todo mundo o quanto agem por estúpida histeria. Esses ativistas deviriam pressionar os legisladores e não quem sofre o drama da decisão e a tragédia da violência sexual. A menina, a família e o médico não têm nada a ver com o fato de a lei brasileira prever o aborto para essa situação.
Entre sofrer um drama e tomar uma decisão, há considerável distância que só o coração humano é capaz de preencher, mas também de esvaziar. A razão não pode ser entorpecida pela luz de suas verdades absolutas.
O tema do aborto envolve tantas variáveis e sutilezas. Infelizmente, foi sequestrado por pessoas alucinadas. De um lado, os que desprezam o embrião como se fosse um câncer ou um dente careado. Por sua vez, qualquer um que pense no aborto imediatamente será considerado um personagem digno de exposição na série Mindhunter.
Sou contrário ao aborto para todos os casos. Sem exceção. No entanto, recuso-me a aceitar que a decisão abortiva seja feita por puro capricho. Sou bastante socrático nesse sentido: ninguém erra voluntariamente. O erro de uma sociedade que permite o aborto começa com o fato de que essa mesma sociedade perdeu a capacidade mais genuína de acolher os que sofrem e de julgar quem realmente deva ser julgado.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos