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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

O último passo da evolução humana

(Foto: Bigstock)

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O utilitarismo ético eleva sentimentos de prazer e dor a parâmetros objetivos a fim de fundamentar a moralidade. É o modelo ético do tipo consequencialista mais conhecido e, sem dúvida, mais influente. Por definição, a ética consequencialista defende o seguinte: o que determina o valor moral das ações humanas são as suas consequências e não, por exemplo, a qualidade das intenções ou a disposição do caráter de um agente moral. Em contraste, consequencialistas disputam com as éticas das virtudes e do dever.

Na ética consequencialista utilitarista, valores humanos como o bem, a coragem e a compaixão se reduzem às meras expressões de sensação de dor ou prazer. “Bem” define-se por “qualquer coisa que desperte a máxima felicidade total”. A avaliação quantitativa da “felicidade total” depende do que compreendemos por sensações de prazer e dor, pois tais parâmetros funcionam como instrumentos objetivos disponíveis para julgar o valor das nossas ações morais. Noutros termos: uma ação é moralmente legítima quando produz o máximo de bem-estar geral e moralmente reprovável quando produz sofrimento. Não há qualquer discussão bizantina acerca do Bem e do Mal.

Por ser uma avaliação quantificável e de âmbito independente da qualidade da intenção ou do caráter do agente, a ética consequencialista tende a abrir o domínio da investigação moral à ciência natural. Como se mediante o método científico encontrássemos fundamentos para julgar, se uma ação deve ser considerada moral ou imoral. As reflexões filosóficas acerca da moralidade perdem o terreno para uma suposta “ciência natural da eticidade”. E o progresso estaria vinculado ao progresso científico.

A vantagem desse tipo de ética está na flexibilidade de poder ser ampliada ao reino dos animais não humanos. É um raciocínio relativamente simples: animais sentem. Logo, são portadores de moralidade. Desse modo, entrou para o vocabulário dos julgamentos morais a estranha noção de que existe uma pessoa não humana merecedora de dignidade e respeito moral. Por outro lado, se embrião humano não sente, logo não merece qualquer atenção moral especial. Aborto, por exemplo, seria ato moralmente neutro. Nem certo nem errado. Apenas uma decisão de interromper a gravidez sem ônus ou bônus moral.

No caso de um futuro hipotético, se a ciência descobrisse que um pé de alface sente dor, o simples ato de temperar uma salada deveria ser considerado ato moralmente abjeto. Em tempos mais distantes, humanos evoluídos se alimentarão de luz e os não tão evoluídos ainda serão julgados apenas por saborear um delicioso ensopado de pedras.

O utilitarismo coloca muitos desafios. O mais complexo é a dificuldade com o significado da experiência de felicidade sentida por um sádico enquanto promove dor a uma criancinha inocente. A perversidade, que assinala no homem a disposição profunda para praticar o mal por praticar, impõe limites intransponíveis para o defensor desse tipo de ética. O prazer de um sádico precisa de limites normativos para além da própria experiência de prazer ou dor. A noção de que é moralmente condenável torturar inocentes por prazer não pode ser fundamentada nas noções de prazer ou dor, mas em algum fato moral universal.

O termo “ética” define a maneira de viver dos seres humanos. A experiência humana de tentar compreender o que nós somos já nos diferencia de todos os outros animais. E não faz o menor sentido falar em ética animal, uma vez que a transferência de qualquer tipo de valor moral aos animais não humanos consiste numa capacidade estritamente humana de atribuir valor ao mundo, incluindo valor aos animais. Respeitamos os animais não humanos porque nós, humanos, somos capazes de estabelecer e reivindicar respeito desse tipo.

Nenhum animal que não seja humano foi, é ou será capaz de compreender isto: o que determina o grau de moralidade de uma ação é a exigência exclusiva de seres racionais, livres e conscientes de suas intenções, dos meios e dos fins para os quais toda ação tende a se realizar. E, até o presente momento, nada no universo — a não ser os humanos — demonstrou o exercício dessas capacidades na hora de agir.

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