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Francisco Razzo

Francisco Razzo

O vírus, o verme e os números – ou em busca da dignidade política

fernando haddad
O candidato derrotado à Presidência em 2018 pelo PT, Fernando Haddad. (Foto: Ricardo Stuckert)

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“É duro ter de lidar com um vírus e um verme, simultaneamente...”, disse Fernando Haddad na sua conta do Twitter. Referência clara: além do Covid-19, temos de lidar com Bolsonaro. Há críticas e críticas. E penso que Fernando Haddad, derrotado nas últimas eleições, passou de todos os limites com relação a uma coisa e outra. Sua linguagem boçal, ao chamar o adversário político de verme, revela o caráter daquele que não só pretendia governar como ajudou a afundar o país nessa lama moral.

O uso de metáforas biológicas para se referir a certas pessoas parece fazer muito sentido num primeiro momento de indignação e escalada de rivalidades. Além da boa dose de ressentimento por ter perdido as eleições para Bolsonaro, há um problema objetivo e amplamente estudado no uso político desse tipo de metáfora. O processo de desumanização do adversário começa no medo. Trata-se de racionalidade delirante. As disputas políticas são rebaixadas pela busca de pureza do corpo social. O que você faz com um corpo contaminado por um verme? Purifica o corpo destruindo o verme. Muito atraente para os indignados.

Depois que eu li o livro Purificar e Destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios, do sociólogo francês Jacques Sémelin, nunca mais tratei do mesmo jeito o uso político de metáforas biológicas para atacar adversários. As consequências são perigosas e historicamente constadas (Ruanda é um exemplo próximo). Precisamos buscar a dignidade da política começando pela purificação da linguagem e não com pretensa purificação do corpo político e social.

Fernando Haddad, derrotado nas últimas eleições, passou de todos os limites

Calma, porque o lamaçal moral não termina aí. O caso mais emblemático da semana foi a declaração dos empresários Junior Durski e Roberto Justus. Além do vírus e do verme, temos a planilha do Excel.

Em vídeo, Durski declarou: “O Brasil não pode parar dessa maneira. O Brasil não aguenta. Tem de ter trabalho, as pessoas têm de produzir. As consequências que teremos economicamente no futuro vão ser muito maiores do que as pessoas que vão morrer agora com o coronavírus” (Os destaques são meus). Já em áudio, diz Justus: “Quem entende um pouco de estatística (...) vai perceber que é irrisório. E dos que morrem, dos velhinhos, só 10% a 15% deles morrem. Se pegarmos o vírus, o que seria bom, já criaríamos anticorpos e acabaria de uma vez”.

O que se evidencia é a mentalidade economicista do liberal ralé no seu ápice. Estou chamando de “liberal ralé” o caráter puramente materialista-utilitarista do raciocínio. Por “ralé” me refiro à visão grotesca a respeito da realidade humana. Durski e Justus, empreendedores de sucesso, sabem conduzir a vida com produtividade e eficiência. Pensam não em pessoas, mas em abstrações numéricas.

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A maximização do bem-estar e do conforto material como o único princípio regulador da conduta social. Na verdade, tanto eles quanto Haddad, nesse particular, demonstram o fundo do poço de uma mentalidade higienista e perversa. Tudo isso me lembra a crítica que Dostoiévski faz ao utilitarismo a partir de figuras trágicas como é o protagonista de Crime e Castigo, Rodion Românovitch Raskólnikov, que justifica ter matado uma velha por ela ser “apenas um piolho – inútil, nojento e nocivo”. Que diferença faz para a manutenção do bem-estar do corpo social um vírus, um verme e um punhado de velhos? Bolsonaro deve ser julgado nos termos corretos. O tribunal da história não perdoará suas escolhas cruéis em nome do jogo pelo e da manutenção do poder.

Mas vamos ao contexto: não há nada mais poderoso e legítimo do que todo esse sentimento de indignação contra Bolsonaro. A situação é delicada e ele insistentemente minimiza os esforços para conter o avanço do vírus. Hoje ele é a vidraça. E, como presidente da República, assumiu para si toda a responsabilidade de administrar crises e ódios. Governar na segurança do porto é fácil. Por isso, o maior teste para um estadista – recorro aqui a uma metáfora que certamente agradaria tanto Platão como Maquiavel – é a tempestade em alto mar.

A roda da fortuna não para de girar por causa de nossas preferências políticas. Numa versão mais conservadora do pragmatismo político: política ainda significa a arte do possível. Tal concepção de política não pode estar divorciada da virtude da prudência, a inteligência prática que capacita o estadista a preservar a ordem, a justiça e a liberdade (não adianta se declarar conservador e agir com a mentalidade de um stalinista).

Ela pode não matar você no conforto de sua casa, mas até esse momento a “gripezinha” já tirou a vida de pelo menos 15 mil pessoas

Exceto para os mais devotos, Bolsonaro não tem se saído muito bem na administração dessa atual crise. Tudo bem, tem um fator histórico importante aí: trata-se de uma crise sem precedentes na história recente. Um teste não só para grandes estadistas – coisa que seu Jair está longe de ser – como para todos nós enquanto sociedade civil e comunidade moral.

Embora algumas pessoas tentem minimizar o novo coronavírus como uma mera “gripezinha”, o mundo não vive algo parecido pelo menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial (não estou comparando os horrores da guerra com a pandemia). Nessas horas, nossas crenças mais queridas são colocadas em xeque. Não bastam virtudes do homem de negócio e suas planilhas de Excel, não basta a indignação do político fracassado, não basta a nostalgia demagógica de reacionários e muito menos o sonho utópico de revolucionários. Nenhuma dessas crenças passará no teste da realidade e da escalada mortal do Covid-19.

Pode não matar você no conforto de sua casa, mas até esse momento a “gripezinha” já tirou a vida de pelo menos 15 mil pessoas. A Itália chegou a registrar o número de 793 mortes em um único dia por causa do Covid-19. Para se ter uma ideia mais concreta do que significa isso, é mais ou menos como se quatro aviões Boeing 737 se chocassem e, tragicamente, todos os passageiros e tripulantes morressem (só para lembrar, a tragédia em Brumadinho matou aproximadamente 300 pessoas).

Nada mais louvável do que adotarmos algumas medidas duras para evitar a catástrofe. Medidas que exigem a solidariedade e compreensão de cada um de nós. Gostaria de insistir neste ponto: a única maneira de sairmos dessa lama moral é persistir na purificação da linguagem antes de sair por aí querendo purificar o corpo social em nome do bem-estar “coletivo” contra o vírus, o verme e os números. O primeiro processo de purificação da linguagem começa por evocar o princípio de dignidade. Pois não existe dignidade em política sem a cumplicidade com a vida de cada pessoa humana.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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