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Dos clássicos da filosofia política que eu mais gosto de estudar, e não por devotar apoio incondicional a suas teses, métodos e conclusões, o famoso filósofo florentino Nicolau Maquiavel, conhecido autor de O Príncipe, está entre os mais instigantes. E por razão simples: Maquiavel me ajuda a compreender a política sem aquele véu voluntarioso de inocência, acessório tão típico entre puritanos morais de esquerda e direita, quando aponta para o fato de que, em se tratando de poder político, o ser humano não é lá bicho muito confiável.
Em importante e já muito discutida passagem dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio – obra-prima da defesa dos ideias republicanos –, Maquiavel descreve o que ficou conhecido como sendo o seu pessimismo antropológico e que não pode deixar de ser conjugado com a sua realística concepção de política bem como a de história como aquele palco em que se dramatizam tanto a transitoriedade dos governos como o permanente e tortuoso apetite humano por poder. Ele diz:
Como demonstram todos aqueles que discorrem sobre a vida civil e todos os seus exemplos de que estão cheias todas as histórias, quem estabelece uma república e ordena suas leis precisa pressupor que todos os homens são maus e que usarão a malignidade de seu ânimo sempre que para tanto tiverem ocasião; e, quando alguma maldade se ocultar por algum tempo, assim procede por alguma razão oculta que não se conhece porque não se teve experiência do contrário; mas essa razão um dia é posta a descoberto pelo tempo, que, segundo dizem, é o pai da verdade.
Já em O Príncipe, na famosa passagem do capítulo XVII, ele é ainda mais explícito quanto ao pessimismo no quesito tendência humana para escolher o pior: “geralmente se pode afirmar o seguinte acerca dos homens: que são ingratos, volúveis, simulados, dissimulados, fogem dos perigos, ávidos de ganhar”. Resumindo: o homem não presta, nunca prestou e não há engenheira social, reza braba, choro dos millennials ou manual do guerrilheiro capaz de mudar isso sem destruir a própria natureza humana.
A política realista parte deste fundamento: a perversidade é uma constante na história humana. Na prática, todo aquele que pretende governar precisa lidar com o probleminha, já que o fundamento de todo e qualquer governo é a insuficiência e a incapacidade de os indivíduos construírem o reino perene de paz aqui na Terra – por mais que seja esse o desejo de todo homem de boa vontade. Os Estados nascem, justamente, para assegurar certa ordem legal capaz de levantar obstáculos contra o deturpado desejo humano de subjugar e destruir outros indivíduos. Para isso servem as leis e as armas.
Não pretendo argumentar que necessitamos de um Estado autoritário e forte como único ente legítimo capaz de impedir a autodestruição humana. Sigo republicano e, como explica Leszek Kołakowski, “durante séculos o mal intrínseco da natureza humana não só foi invocado como argumento contra tentativas de restaurar as condições paradisíacas na Terra, mas justificou a resistência a todas as reformas sociais e às instituições democráticas também”. Aliás, não à toa o nome de Maquiavel sempre esteve associado ao de tiranos – erro comum de quem leu o florentino pela metade.
Revolucionários e reacionários acham que podem apontar – seja no futuro ou no passado – os caminhos da Terra prometida quando o máximo que conseguem é entregar uma terra devastada
Meu ponto aqui é, antes de tudo, de natureza histórica e antropológica: tomar consciência da história, cujo tempo se consagra como o tribunal da verdade, é tomar consciência desta constante: embora nós de fato criemos coisas admiráveis, há em nós essa maldita vocação para o pior. Nesse sentido, o que Maquiavel descreve acerca da maldade humana em se ocultar, e que só o tempo, portanto, pode ser o pai da verdade, deveria pelo menos nos alertar contra a crença de revolucionários e reacionários em achar que podem apontar – seja no futuro ou no passado – os caminhos da Terra prometida quando o máximo que conseguem é entregar uma terra devastada.
O grande problema desses utopistas é o de presumir, com todo aquele patético fervor mobilizador, que a maldade em nós, ao contrário do que descreve Maquiavel, diz respeito apenas ao resultado de instituições sociais defeituosas e que, ao destruirmos tais instituições e seus símbolos, a história do futuro poderá ser escrita nas páginas em branco de um presente agora purificado das máculas do passado. Em suma, o fazer histórico desses justiceiros, que na prática se dá pela destruição de tudo o que segundo eles não presta, torna-se único ato legítimo de contrição diante do tribunal soberano do tempo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos