A jornalista Mariliz Pereira Jorge escreveu: “Não é coincidência que o eleitor de Pablo Marçal seja o mesmo perfil do eleitor de Bolsonaro: homem, classe média, evangélico. O fascínio pelo ‘coach’ é um fetiche político, que exige discursos cada vez mais radicais. Marçal está seguindo a cartilha e colocando o bolsonarismo no bolso”.
Meu texto hoje é não sobre Pablo Marçal. Pessoalmente, nem eleitor dele eu sou. Para ser preciso, nem voto em São Paulo. E, mesmo se fosse, não é esse o caso. Aqui, meu interesse é o fenômeno da incapacidade da imprensa, e como ela se tornou o principal capital político de Marçal. Parece que não aprenderam nada com 2018. Na verdade, o que me interessa mesmo em política é o teatro, a espetacularização, a novelinha e o jogo. E, claro, como a política mobiliza paixões e a frustra as elites progressistas. Chega a ser divertido, para não dizer constrangedor, esse fiasco analítico.
Maquiavel, mestre da astúcia e do realismo, jamais se contentaria com uma visão simplista de perfis de eleitorado como a que se apresenta na leitura contemporânea de figuras políticas como Pablo Marçal. Ele, cujo foco era entender a natureza do poder e do comportamento humano, alertaria para o fato de que a política não se resume a uma soma de atributos de seus eleitores, mas sim ao conjunto incomensurável de interesses, medos, ambições e conveniências. A imprensa precisa ler mais Maquiavel e menos a si mesma.
Não sei se Marçal leu Maquiavel; os jornalistas não leram e, se leram, não entenderam nada. Na política, é preciso parecer mais do que ser; porque o que conta, no fim, não é o que se é, mas como se é visto
E por falar em incapacidade, viram o final do Roda Viva? Foi patético; era para ser apenas uma foto protocolar de que ninguém lembraria. Quando ele mostra a carteira de trabalho, qual é a reação das jornalistas? Tornar a imagem viral.
A análise de que o fetiche pelo coach ou a suposta coincidência de perfis de eleitores entre Marçal e Bolsonaro – “homem, classe média, evangélico” – não passa visão ingênua e até moralista, para não dizer preconceituosa, do jogo político. Pagarão com o próprio preconceito e estultice.
Lá no Príncipe, a grande lição de Maquiavel foi de que a política não se trata de seguir uma “cartilha” de princípios éticos preestabelecidos, mas sim de jogar com a fortuna (isto é, saber lidar com as contingências e circunstâncias) e a virtù (a virtude de saber fazer o que for necessário, a astúcia e força), adaptando-se aos fluxos e refluxos de forças políticas, sociais e culturais.
Não sei se Marçal leu Maquiavel, pouco importa; o fato é que jornalistas não leram e, se leram, não entenderam nada da política. Marçal, nessas eleições, demonstrou compreender que a política é um palco em que estratégias de teatralidade, astúcia e equilíbrio são essenciais. Na política, é preciso parecer mais do que ser; porque o que conta, no fim, não é o que se é, mas como se é visto, sobretudo pelos adversários. Como mobiliza reações e emoções. Pouco importa se eu concordo com isso, se acho isso ético ou civilizado.
Veja o caso do “cidadões”, de Amanda Audi. O deslize da jornalista ao usar o termo “cidadões” revela a tensão e a falta de preparo no jogo político. Para a percepção pública, isso indica desequilíbrio e vulnerabilidade, reforça a narrativa de que Marçal é capaz de desestabilizar seus críticos e enfraquece a credibilidade da mídia, que deveria confrontá-lo com clareza e preparo. Em vez disso, o persistente sorriso de Audi é o de quem está prestes a naufragar na própria arrogância.
Para o bem ou para o mal, o “coach” entendeu o que os jornalistas não estão entendendo: a importância de construir uma narrativa que capitaliza tanto sobre os ressentimentos quanto sobre as aspirações dos indivíduos. Mariliz, ao sugerir que ambos, Bolsonaro e Marçal, atraem o mesmo tipo de eleitor por serem a mesma coisa – homem, classe média e branco –, subestima a capacidade de distinção entre os diferentes eleitores que compõem a base de apoio de cada um. Ou seja, ela não entendeu nada do realismo político. Nada.
A eficácia política reside na habilidade de compreender e manipular a dinâmica de poder em diferentes contextos. A associação entre o eleitor de Marçal e o de Bolsonaro é baseada em leitura superficial de similaridades culturais e sociais, pois ignora não só a multiplicidade de interesses e motivações que levam alguém a apoiar um ou outro, mas a própria forma como eles mobilizam seus discursos.
O “coach” entendeu o que os jornalistas não estão entendendo: a importância de construir uma narrativa que capitaliza tanto sobre os ressentimentos quanto sobre as aspirações dos indivíduos
Essas simplificações não captam o que a política de fato é, mas apenas expressa o que tais jornalistas gostariam que fosse. No fundo, eles são idealistas que fantasiam com um mundo de autoadulação e sinalização de virtudes. Eles não percebem que, na realidade, os eleitores até podem compartilhar uma identidade religiosa ou de classe, mas ainda assim são movidos por diferentes medos (econômicos, sociais) e diferentes desejos de transformação política (revolução moral, retorno à ordem, progresso econômico). Mariliz é incapaz de entender por que as pessoas votam em Marçal, pois ela mesma não é capaz de dizer a si mesma por que não vota nele. Ela não pensa a política e todas as suas nuances; apenas presume ser algo que não é.
A visão de que um político como Marçal está “seguindo a cartilha” e “colocando o bolsonarismo no bolso” é uma leitura estúpida na medida em que subestima tanto a natureza estratégica da liderança política quanto a percepção que o eleitor tem de si mesmo e de suas expectativas. Esse tipo de análise, ao se limitar a apontar coincidências supostamente antropológicas nos perfis de eleitores, falha em perceber que a verdadeira questão não é quem é o eleitor médio, mas sim como Marçal manipula as expectativas, os medos e as esperanças dos jornalistas – seu antileitor e maior capital político.
Nesse contexto, vale considerar a crítica de Thomas Sowell ao papel dos especialistas – ou dos “ungidos”, como ele os chama – na análise política. Diante do “fenômeno Marçal”, os jornalistas se veem como os únicos capazes de interpretar a realidade política e denunciar o perigo que ele representa. Confiam tanto em suas próprias narrativas, tratadas como verdades incontestáveis e altamente sofisticadas, que são cegados pelo próprio sentimento de autoridade intelectual. Ao insistirem em análises que desconsideram a astúcia e o cálculo por trás da teatralidade política, esses “ungidos” acabam reforçando o papel que Marçal lhes atribui: o de antagonistas incompetentes que, ao criticá-lo, ampliam ainda mais seu alcance e influência.
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