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Para a história não se repetir como tragédia

Foto: Divulgação (Foto: )

Das poucas coisas que eu concordo com Karl Marx, esta é uma delas: em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, ao corrigir Hegel, ele diz: Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Concordo plenamente. Apenas acrescentaria que, nesse contexto, “farsa” não significa mentira, fingimento ou embuste. Antes, refere-se à comédia burlesca. É assim que a nossa história se repete: como comédia.

Para nós, brasileiros, que neste domingo celebraremos não a festa, mas a ressaca antecipada da democracia, isso é ainda mais significativo. Por mais que o gênero fanfic diga o contrário, esqueçam o trágico e os grandes dramas. Nossa história política é cômica. Prefiro assim. Trata-se de uma aposta no “jeitão” brasileiro. Nossas tragédias são de outra natureza. Enfim. Diferente de Marx, que mui piedoso acreditava que os homens não fazem a sua história como querem, pois “não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”, para o bem ou para o mal, eu acredito nas escolhas que fazemos — e escolho não abrir mão das minhas escolhas.

Como acredito ser um homem de palavra, faço questão de provar minha tese. Como toda gente, tenho minhas dúvidas e fraquezas. Em 15 de outubro de 2014, escrevi um artigo para este jornal chamado A Caricatura da Discórdia. Não, eu não fazia futurologia. Também não estava prevendo o “clima” das eleições de 2018. Apenas registrava minhas impressões em 2014 sobre a disputa entre PT e PSDB. Teria sido ali o anúncio da nossa tragédia? Deixo a pergunta para reflexão posterior. O PT que vá aprender a fazer mea culpa e evite chamar o Cid Gomes para comícios. O caso é o seguinte: a história se repete. Com a diferença básica de que a “direita fascista”, naquela época, era o eleitor do PSDB. Os “comunistas” continuam os mesmos.

Com alguns acréscimos em colchete e revisões de algumas frases truncadas, segue meu texto de 2014:

“Pessoas não muito acostumadas com os jargões da política me perguntam como identificar e diferenciar as ideologias de esquerda e de direita. De imediato respondo: evite os termos. São gastos pelo tempo e pelo imaginário da discórdia. Hoje defendo que já não passam de espantalhos. São resquícios da polarização ideológica da Guerra Fria — embora tenham nascido lá na Revolução Francesa. De todo modo, muita gente utiliza.

De intelectuais catedráticos a meninos na puberdade, as pessoas querem ser identificadas como de esquerda ou direita. Leem autores considerados de esquerda ou direita; descrevem com nostalgia como a vida em países de esquerda ou direita era é ou será magnífica; escolhem políticos, escolas, roupas e, no extremo, até namoradas e namorados. Isso para não falar do risco de se ter uma sogra de esquerda ou direita.

Aqui no Brasil, até um tempo atrás, não era legal estar associado à direita [por causa do fantasma do regime militar]; hoje, virou motivo de orgulho. Por outro lado, os desacreditados intelectuais de esquerda precisam reafirmar que a esquerda não teme dizer seu nome. Como o futebol está em baixa no país do futebol [depois do 7 a 1], trata-se de uma questão buscar identidade ideológica. Mesmo o desejo de autoafirmação ultrapassa os limites dos rótulos, eles funcionam para demarcar posição. Nesse sentido, torna-se inevitável o uso desses termos — pelo menos para que as pessoas criem uma rede de solidariedade e possam esbanjar orgulho.

Para evitar paixões desmioladas ao vestir o adesivo ideológico, é preciso mapear os lugares-comuns de ambos os grupos. Não é difícil fazer um inventário dos termos elementares mais usados por eles.

Sempre e invariavelmente, quem se orgulha de ser de esquerda chamará de “fascista” todos aqueles que não são ou desprezam alguém de esquerda. Não interessa se o seu oponente for um liberal defensor da economia de mercado, um entusiasta do Estado mínimo, um católico distributivista ou um anarquista convicto. Para quem é de esquerda, não ser de esquerda é ser fascista. O que significa: ser simpatizante de ditador nacionalista, elite branca e torturador xenofóbico [e hoje, acrescentaria, o mal encarnado no mundo].

Por outro lado, os de direita adotam o termo “comunista” para os seus desafetos. O comunismo tem nesse contexto o mesmo peso constrangedor de chamar alguém de nazista. Não interessam se há radicais diferenças históricas entre os dois regimes totalitários, não interessa a variedade histórica dos “comunismos”. Só interessa uma coisa: a associação ao imaginário de morte e terror. Ser comunista é ser genocida e totalitário. E é isso o que alguém de direita pretende dizer quando chama o adversário de comunista. [Assim como a pessoa de esquerda chama de nazista um adversário. Fascista ou comunista são dois absolutos para o mal].

A esquerda odeia a “classe média” mais que tudo [lembra do vídeo da Marilena Chauí dizendo que “odeia a classe média” enquanto Lula morre de rir ao fundo?]. Ódio explícito: a classe média é a razão para toda desgraça do país. Da enchente à falta d’água, do trânsito nas metrópoles à violência relacionada ao tráfico de drogas, do caso de suspeita de ebola à cracolândia. Não interessa: a classe média é o bode expiatório da esquerda [hoje seria todo leitor de Bolsonaro]. Se você, da classe média, for roubado, sequestrado ou queimado por bandidos [na época escrevi pensando na dentista em que bandidos atearam fogo], lembre-se sempre: para o seu amigo de esquerda, a culpa será sempre e inevitavelmente sua.

Já a direita tem uma tendência menos explícita para identificar culpados. Por isso, está sempre à procura de “agentes ocultos” e tem preferência por explicações de teor conspiratório. A culpa não é totalmente de alguém concreto, são fantoches de uma elite que controla a Nova Ordem Mundial, o Foro de São Paulo, o Globalismo. Seus agentes estão infiltrados na Igreja Católica, no MEC, na Maçonaria, na festa junina…”

Voltando a 2018, a onda conservadora, representada por Bolsonaro e que conseguiu chegar ao poder, não se limita a uma resposta ao projeto criminoso do PT — embora tenha conquistado o voto de muita gente por causa do antipetismo. Na verdade, nessas eleições, para além do pragmatismo antipetista, uma cosmovisão igualmente tóxica e delirante contra inimigos imaginários, uma nova narrativa de “nós” contra “eles”, foi adotada como esperança para o país. Isso estava lá em estado de crisálida antes de 2014. Agora, como futuro presidente do Brasil, não mais como candidato, a primeira medida política de Bolsonaro deverá ser a de frear os ânimos de seus seguidores e mostrar sua capacidade de governar para todos os brasileiros, pois só assim a história de amanhã não se repetirá como tragédia.

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