"O mercado de escravos", de Auguste François Biard. Imagem: Reprodução| Foto:

Viver como pessoa nada mais é do que tentar compreender o mundo a partir de experiências plurais e históricas concretas entre vivos, mortos e não nascidos. Uma comunidade moral imaginada de pessoas se fundamenta no emaranhado de memórias que foram acumuladas e compartilhadas ao longo do tempo entre gerações. O mundo não começou ontem a partir de uma ideia simples e racionalmente poderosa. A história não funciona como uma equação matemática capaz de recriar o mundo do zero. A história também dá esperança e aponta para um futuro possível.

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Qualquer projeto de futuro que parta de experiências imediatas e esvaziadas do passado será falso se não considerar o vínculo entre presente e passado. Não preservamos a memória dos mortos à toa. Acreditamos nas próximas gerações porque respeitamos a sabedoria das gerações anteriores. O imediatismo é uma falsificação da experiência humana.

A memória e a expectativa são depósitos de experiências humanas reais. Pensar assim não tem nada a ver com construções ideológicas abstratas. Pelo contrário: significa pensar na riqueza das experiências pessoais transmitidas num contínuo fluxo de símbolos culturais. Símbolos culturais encarnam nossa luta diária para lidar com a finitude humana, encarar o fato de que somos imperfeitos, limitados e dependentes uns dos outros. É assim que corrigimos nossos erros, nunca apagando o que nós fomos.

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A noção de mundo não se sustentaria em princípios racionais absolutos. Não se deve deduzir a ideia de mundo de princípios puros do intelecto. É preciso estimar a sabedoria do tempo. Quando digo isso, penso especialmente nesta bela sentença do escritor Joseph Conrad: Aqueles que viajam em busca de sabedoria andam apenas dentro de um círculo; e depois de todo esforço, percebem quão primitiva é sua ignorância.

Em certo sentido, há um mundo diante de nós que foi deixado pelos nossos antepassados. Não significa um mundo bom ou ruim, mas um mundo valioso, cheio de contradições e que precisa ser preservado e, paradoxalmente, aperfeiçoado. Ter consciência de uma comunidade moral de pessoas vivas, mortas e não nascidas significa exatamente isto: ser condicionado a um determinado contexto cultural e, ainda por cima, reconhecer o peso da liberdade, de que podemos mudar e preservar, criar sem destruir.

A primeira exigência desse vínculo é chamar alguém pelo nome. Já escrevi isto aqui em outra ocasião e, se precisar, repito quantas vezes for preciso: o nome é a referência fundamental para romper com a redutora ideia de que nós somos tão somente uma coisa e um conceito. Nosso nome nos define enquanto pessoas e nos acompanhará por toda a vida e para além dela. Ninguém estampa na sepultura: certa coisa jaz aqui. Exceto quando viramos estatísticas e ganhamos uma etiqueta sociológica conveniente com os interesses de quem usará os dados estatísticos.

George Steiner, num texto que explicava de que maneira Alexander Soljenítsin tem obsessão pela “sacralidade do detalhe”, escreveu o seguinte: “A mente dos mortais é feita de tal maneira que não consegue reter com uma identidade precisa mais do que um pequeno número de presenças conhecidas. Pelo menos 20 milhões de homens, mulheres e crianças foram enviadas à morte nos expurgos stalinistas. Se tivermos uma grande capacidade de percepção interna, conseguiremos visualizar, conseguiremos enumerar e, em certa medida, identificar 50, talvez 100 pessoas. Para além disso estende-se o cômodo limbo da abstração. Assim, se realmente quisermos entender, precisamos tentar analisar e expor esses sonhos da razão que se chamam teorias”.

É preciso não perder a consciência de que qualquer abstração teórica dessacraliza os detalhes e, consequentemente, tem um poder tirânico de desumanizar as pessoas. Todo cuidado é pouco ao lidar com abstrações, pois elas são tentadoras.

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Por exemplo: infelizmente, tem muita gente que ainda pensa e divide o mundo social adotando o conceito de “raça” a fim de diminuir a memória de pessoas reais. A fé no processo de categorização dos indivíduos por raça persiste desavergonhadamente entre nós. Esse tipo de classificação é fruto de uma perversidade teórica.

O raciocínio é poderosamente simples: O homem é ser social. Por ser social, vive em grupos. Os grupos são conjuntos de indivíduos. O que tem valor para a classificação não é a pessoa concreta, mas armação estrutural que condiciona os indivíduos como membros de um determinado grupo. A base da relação entre os grupos é a exploração e o poder. O que tem valor é a ideia abstrata, não as pessoas.

Trata-se de um processo descrito como a igualação do não igual — para usar conhecida expressão de Nietzsche sobre como a linguagem trabalha conceitos e metáforas. Aliás, vale a pena citar o trecho completo para entender em que medida falar em “raça” é um absurdo da linguagem cuja única função no contexto social é desumanizar: “Todo conceito nasce por igualação do não igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrários abandonos dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial”.

Quando adotamos o conceito de “raça” para categorizar as pessoas, devemos lembrar que todo conceito é “formado por arbitrários abandonos dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo”. Quantas pessoas não se tornam invisíveis quando adotamos arbitrariamente um conceito para classificá-la e “esquecer-se do que é distintivo”? Classificar as disputas sociais entre “negros” e “brancos” é esquecer-se do que é distintivo, e o que é distintivo são as pessoas. Não morrem “negros”. Morrem pessoas, que jamais devem ser apagadas pela tirania das representações teóricas.

Com todo respeito a quem se dedica a fazer suas lutas sociais, o fato é que não existem raças, só pessoas. Se racismo implica discriminar alguém em virtude de sua raça, e raça é uma construção teórica criada por pseudociência e mais um monte de malabarismo teórico, então a melhor forma de acabar com o racismo é acabar com a “ideia de raça”.

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Não é uma solução mágica, reconheço. Os problemas humanos, como miséria, sofrimento, tortura e assassinatos etc., não desaparecerão. O paraíso não é uma possibilidade histórica concreta. O inferno, ao contrário, sim. E o mais curioso é que o inferno nasce, justamente, primeiro no coração e no intelecto de homens corrompidos por grandes ideias abstratas — como é o caso da ideia de raça.