Desde que a atual edição do Big Brother Brasil começou, ela tem pautado boa parte das discussões nas redes sociais. Em virtude de alguns participantes, o tema da cultua do cancelamento veio à tona. Entretanto, para ser honesto com as minhas preocupações: não só este BBB especificamente toca o sinal de alerta a respeito da cultura do cancelamento, mas toda a lógica inerente a reality shows do tipo Big Brother. E penso que rede social e Big Brother nasceram um para o outro. Juntos, formam o palco perfeito para o tribunal de exceção mostrar quem manda.
Pessoalmente evito fazer comentários a respeito deste experimento sociológico de entretenimento famoso em todo mundo pelos barracos, anunciantes, pelas provas de liderança para garantir imunidade, mais anunciantes e paredões de eliminação. O público escolhe seu “brother” preferido tal como escolhe a marca de seu sabonete. E o resto? O resto é resto. Escolher o preferido implica no cancelamento de todos os outros.
O Big Brother está mais para um laboratório que conduz o público a uma espécie de catarse coletiva cuja síntese pode ser definida pela própria cultura do cancelamento
Quem vê de longe até arriscaria dizer que eu sou entendido do assunto. Não, confesso que nesses longos anos de Big Brother nunca assisti a um “capítulo” (se é que o termo capítulo sirva para definir as ações que se passam na “casa” – como diz a propaganda – “mais vigiada do Brasil”). Se não tem roteiro, não tem capítulo. Cada episódio parece ser um resumo das aventuras de um dia banal com algumas festinhas, intrigas e discussões acaloradas.
Mamãe, que com seu exagero de sempre foi a bússola da minha consciência moral para assuntos domésticos, dizia que não assistia ao Big Brother porque não achava a menor graça em ver gente aleatória tirando caca de nariz em rede nacional. Ou seja: gente que fica famosa por ficar famosa porque um belo dia apareceu em programa de tevê e ficou famosa. Como denunciava Woody Allen em Para Roma, Com Amor (2012) com o personagem Leopoldo Pisanello (Roberto Benigni), é a espetacularização do banal.
Não por elitismo, não me levem a mal. Como sabem, também tenho os meus caprichos e curto algumas banalidades. O problema de banalidades do tipo Big Brother é deixar de ser uma experiência lúdica ou estética para se tornar um experimento sociológico com cara de jogo sério, valendo a própria dignidade. Não, definitivamente Big Brother não é um “jogo” como os jogos deveriam ser entendidos, embora quem participe da casa acredite piamente viver uma competição de vida ou morte.
Antes de ser um jogo, o Big Brother está mais para um laboratório que conduz o público a uma espécie de catarse coletiva cuja síntese pode ser definida pela própria cultura do cancelamento. Ouso dizer, e não tenho quaisquer provas históricas a respeito do assunto; portanto, é mero palpite: reality shows do tipo Big Brother deram origem a esta cultura. O cancelamento das redes sociais obedece à mesma lógica do linchamento como se fosse o ápice da civilização.
Uma das melhores críticas que já li foi feita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Diz ele em Medo Líquido: “o que os reality shows expõem é o destino. No que lhe diz respeito, a eliminação é um destino inevitável. É como a morte, que você pode tentar manter a distância por algum tempo, mas nada do que faça poderá detê-la quando finalmente chegar. É assim que as coisas são e não pergunte por que...”
Neste sentido, quem participa da “casa” antecipa uma experiência de morte mediante a experiência de eliminação. E eu diria que o espectador experimenta o prazer do juiz e do algoz. Sim, o processo de eliminação não é um mecanismo social simples. Jogar para não ser eliminado é jogar pela própria sobrevivência, ainda que socialmente falando. Julgar para eliminar é vivenciar por um dia a alegria de um tirano, que é o dia em que pode mandar para o lixo da história os empecilhos de seu império de glória e justiça.
Para que cumprir a exigência de amar os meus inimigos se posso ter o prazer, ainda que virtual, de destruí-los?
Segundo Bauman, diferentemente de seu predecessor criado por George Orwell em 1984, “cujo nome se tomou emprestado sem pedir licença”, o Big Brother de hoje não é “para manter as pessoas dentro e fazê-las andar na linha”, ou seja, não se refere a um regime totalitário de controle de todos os aspectos da vida do homem; pior do que isso, este tipo de experimento serve para “chutá-las para fora e assegurar-se de que, uma vez que tenham sido chutadas, elas irão embora de maneira adequada e não voltarão...”.
Em resumo, o mundo criado por esse tipo de experimento social de entretenimento inútil “tem mostrado vivamente e provado de forma convincente”, assegura Bauman, que “se refere a ‘quem manda quem para a lata do lixo’, ou melhor, quem fará primeiro, enquanto ainda há tempo de fazer com os outros o que eles muito desejariam, se tivessem a chance, fazer com você”. Deixo a pergunta: para que cumprir a exigência de amar os meus inimigos se posso ter o prazer, ainda que virtual, de destruí-los?
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