Certamente você já leu esta belíssima e sugestiva passagem: “Ai, ai, ai dos que habitam na terra, por causa do toque das trombetas que está prestes a ser dado pelos três outros anjos!” Do ponto de vista teológico, é o anúncio do Juízo Final. Essa passagem está no mesmo capítulo em que o sétimo selo foi aberto: “Quando ele abriu o sétimo selo, houve silêncio nos céus cerca de meia hora”. Na sequência vem o caos: trombetas serão tocadas; a besta sairá do mar; o sétimo anjo derramará a sua taça no ar e a forte voz que vem do trono dirá: “Bolsonaro dará o golpe em 2022”. Fim da história. Início da tragédia. Silêncio.
É possível colocar toda a história política humana na perspectiva teodramática do livro do Apocalipse. Não se trata de luta de classes, visto que o poder explicativo do materialismo histórico não passa de contos de fadas. Nem tudo o que é sólido desmanchou-se no ar; nem tudo o que era sagrado é profanado. A consciência política assumiu a forma da luta do bem contra o mal. A abordagem, para o profeta do caos, deve ser teológico-política. São Marx não é São João. Vocês não estão escutando as trombetas? No caso da recente história política do Brasil, a luta é entre os que estão do lado da luz contra os que brotaram do subsolo.
O problema da maioria dos profetas do caos que convocam a luta contra o governo Bolsonaro é achar que, por amar, pode absolutamente qualquer coisa contra o mal absoluto
Para quem vive o centro de gravidade deste drama teológico e projeta suas fantasias num futuro catastrófico, o fim dos tempos é logo ali. Os profetas do caos anunciam o fim dos tempos em 2022, quando o sétimo selo das eleições será aberto. Não teria sido com este propósito que o governo Bolsonaro facilitou a compra de armas de fogo, armar suas milícias para dar o definitivo golpe em 2022? Os sinais estão todos aí: “relâmpagos, vozes, trovões e um forte terremoto. Nunca havia ocorrido um terremoto tão forte como esse desde que o homem existe sobre a terra”. Vocês não viram os sinais?
Eu não tenho dúvidas de que o governo Bolsonaro é um dos piores da história recente. Para ser preciso com os termos, o conceito de “governo atual” traz em sua estrutura semântica a ideia de “pior governo da história recente”. Dependendo do lugar que a gente olha, todo governo é o pior da história. Com Bolsonaro não seria diferente. Contudo, entre verificar que o atual governo Bolsonaro conduz o país para a lama de sua estupidez criminosa e anunciar que dele emergirá a besta há um abismo. Ou no fim das contas só importa a narrativa?
O governo Bolsonaro é ruim e ainda pode piorar. Sim, todos os governos humanos podem piorar. No caso do bolsonarismo, há vocação explícita para violência. Mas nazista? Genocida? Golpe em 2022? Todas essas categorias devem ser lidas como licença poética para acusar o adversário de “o mal absoluto encarnado na terra”. Como se combate o mal absoluto mesmo? Antifas não saem em procissão com incenso e ladainhas misericordiosas. Veja a lógica do duro acerto de contas dos profetas do caos: todos os que votaram no Bolsonaro serão lançados no lago de fogo que arde com enxofre.
Em resumo: o problema da maioria dos profetas do caos que convocam a luta contra o governo Bolsonaro é achar que está lutando a guerra de vida e morte. Por amar, pode absolutamente qualquer coisa contra o mal absoluto.
Contra esse tipo de pretensão de pureza moral, eu lembro de um texto do Rabi Alan Miller que li como epígrafe de um capítulo do livro Anatomia do genocídio, do psicólogo Israel W. Charny. Diz Alan Miller: “Reconheço em meus filhos parricidas em potencial, como reconheço em mim um infanticida em potencial – especialmente quando as coisas se tornam difíceis. Estou agudamente consciente desses impulsos que, em condições radicalmente alteradas de vida, poderiam despertar em mim o comportamento de um gauleiter nazista ou de um membro da SS. Não tenho ilusões sobre a natureza humana”.
Não acho Bolsonaro isento de críticas duras, e até flerto com a possibilidade do impeachment, visto como liderou e lidera o país durante a pandemia. Seu governo é um desastre; seus bajuladores, um bando de fanáticos... Agora, é muita pretensão profética romper os limites do político como única forma possível de convocar a luta para enfrentar o mal absoluto encarnado na besta de Brasília.