O futebol, dizem, é um espelho da sociedade. E, como todo espelho, ele reflete conforme a intensidade da iluminação. Às vezes, a luz revela monstros que insistimos em chamar de sombras. O caso do jogador do Palmeiras insultado na Libertadores Sub-20 não é uma exceção: é um sintoma. Um sintoma de que, apesar dos discursos e das campanhas, a arquibancada de futebol ainda é uma trincheira onde velhos códigos são reforçados sob o verniz da paixão esportiva.
A reiteração não espanta. O racismo no futebol não é problema estrutural, inscrito nas instituições, oculto e onisciente nas consciências coletivas, nos modelos econômicos e nas narrativas midiáticas. É um fenômeno intersubjetivo, uma coreografia social que se reproduz na cumplicidade de gestos, palavras e omissões. É o que é visível no símbolo. Não são só os insultos no calor da arquibancada. São também a risada cínica, o desdém e a condescendência. O problema do racismo não é o gesto isolado do torcedor ou a câmera que captura o momento. É a permissividade que lhe dá sentido. É o ambiente que transforma o ataque em rotina e a resposta em murmúrio. O que o estruturalismo jamais conseguirá compreender.
Por isso, quando aparece o presidente da Conmebol, não há teoria estruturalista que explique. No meio do tumulto, solta sua pérola: sem os clubes brasileiros, a Libertadores seria como Tarzan sem Chita. Uma metáfora aparentemente involuntária, uma piada sem graça, um erro sintomático. O dirigente, talvez sem notar, resumiu com precisão o teorema da desumanização: quem se julga senhor da selva dificilmente percebe o lugar que destina aos outros. Difícil acreditar em coincidências. Não é um ataque direto, é a indiferença tornada pública. A fala não ofende diretamente, de fato. Entretanto, ela reafirma hábitos. A história do racismo é, em parte, a história de imagens e metáforas que desumanizam. E Alejandro Domínguez, mesmo sem perceber, adicionou um novo capítulo. Os símbolos que sustentam o racismo não precisam ser explícitos. Basta que permaneçam vivos, repetidos, normalizados e banalizados como um gracejo cúmplice. Basta que um dirigente fale como quem diz o óbvio e que ninguém pare para perguntar o que, afinal, está sendo dito.
Racismo não é um desvio de caráter. É a corrosão da comunidade moral. Ele se impõe quando os códigos são reproduzidos e aceitos sem questionamento
O racismo não sobrevive sozinho. Ele se alimenta dos símbolos que o sustentam. O macaco, a risada, a metáfora ingênua. Ele se refaz na interação, se renova na repetição. O insulto do torcedor, o deboche do paraguaio, o silêncio seletivo das instituições. Tudo isso compõe um código partilhado, um jogo de signos em que os significados são negociados à medida que as conveniências mudam. O gesto racista não é só um desvio de caráter. É uma senha reconhecida, um sinal de pertencimento a um clube que nunca admite sua existência. A tradição desse jogo é clara: desumanizar, recuar, fingir surpresa, debochar, recomeçar.
Não por acaso, a reação de Leila Pereira, presidente do Palmeiras, foi imediata e dura. Foi exemplar. Não apenas contra os insultos a seu jogador, mas contra a leveza com que Domínguez tratou o episódio. Um abismo separa quem enxerga o racismo como um desvio e quem o reconhece como um código social entranhado na linguagem, nos gestos e nas reiterações cotidianas. A frase do presidente da Conmebol, tal como o insulto da arquibancada, só encontra efeito porque encontra eco e também encontra silêncio. No riso cínico, na indiferença, na repetição banalizada. As palavras que humilham e desumanizam pertencem a um vocabulário que nunca foi desmontado. Uma herança que insiste em sobreviver, porque afinal é o banal, só uma brincadeira.
Racismo não é um desvio de caráter. É a corrosão da comunidade moral. Ele se impõe quando os códigos são reproduzidos e aceitos sem questionamento. Quando o torcedor racista encontra a cumplicidade do silêncio e da sanção branda. Quando um presidente de confederação enxerga a própria frase como um mero tropeço retórico. É o pacto simbólico.
Porém, quando o jogador negro chora, seu corpo fala o que as instituições fingem não ouvir. Suas lágrimas não são fraqueza, são denúncia. Um símbolo contra outro: o insulto e a dor disputando o mesmo campo, o mesmo espaço simbólico. O choro, nesse jogo, não pode ser um fim. Deve ser um lembrete.
O racismo não é uma engrenagem cega, movida por forças invisíveis, como acreditam os teóricos do racismo estrutural. Racismo é um ritual de destruição simbólica. Sua força não está oculta na estrutura, está na perpetuação de símbolos que destroem a interação, rompem laços e desumanizam no detalhe.
Se fosse apenas estrutural, bastaria desmontá-lo peça por peça. O preço é destruir a sociedade, o que não passa do delírio utópico dos revolucionários. O problema é que ele resiste na forma de sorrisos complacentes, de frases que não eram para ofender, de metáforas que só soam estranhas para quem nunca teve de escutá-las antes. Se o racismo persiste, é porque seu código ainda encontra leitores. Porque há quem o escreva, há quem o repita e há quem o ouça sem perceber. Não basta punir ou discursar. É preciso desmontar o pacto simbólico que transforma insultos em ruído de fundo, até que ninguém mais os ouça. E isso exige algo mais do que notas de repúdio, que não deixam de ser uma exibição moral oportunista. Exige coragem para interromper o jogo, para chorar indignado diante do jornalista negligente. Exige que, pela primeira vez, alguém decida mudar as regras. Só não esperem isso da Conmebol.
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