Para muitos estudantes, a Redação do ENEM se tornou um dos maiores desafios para o ingresso nas universidades. Eu sou professor de filosofia e sociologia do Ensino Médio e cursos preparatórios de vestibular há uns 15 anos e sei bem o drama dos meus alunos. Por isso, essa semana, convidei Luiz Carneiro, autor do livro Redação para o ENEM (Blucher, 2019), para conversar sobre esse que se consolidou como um dos mais importantes exames do país.
Luiz Carneiro é semioticista formado pela PUC-SP e especialista em estudos de linguagem e redação e trabalha como docente desde as séries do Ensino Fundamental até pós-graduação, cursos livres e MBAs.
Luiz, o que te motivou a escrever um livro sobre Redação do ENEM?
Foi a congregação de dois grandes fatores: a percepção de que o ensino de redação é, em geral, ineficiente; e a oportunidade que recebi, em 2015, de trabalhar o ensino de redação com muita liberdade, gerando um método próprio. O ensino de redação, apesar da grande importância que a redação tem em exames e vestibulares e até mesmo em concursos públicos, é extremamente precário, mesmo em boas escolas. Muitas vezes, a redação tem pouco ou nenhum destaque, com poucas horas dedicadas e um tipo de didática formalista que não toca no ponto fundamental, que é o ensinar a pensar (não o quê pensar). E as escolas também pouco formam o repertório, que gera o universo cognitivo e o horizonte simbólico dos alunos e das alunas. Há, por isso, uma grande lacuna de enriquecimento cultural que jamais é preenchida, mesmo que usar o repertório seja uma exigência de várias provas.
Quando pude, em 2015, ministrar aulas de reforço de redação em uma escola particular em Itajubá-MG, tive a sorte de ter extrema liberdade e total apoio para desenvolver um método autoral e exclusivo, que usa uma matriz visual como base. Nesse método, eu também agreguei a formação cultural com bastante força, focando nas conexões e analogias que se pode gerar, a partir do uso inteligente de ilustrações. Então, eu diria que a grande deficiência do ensino de redação no país e a oportunidade de oferecer soluções eficientes para os problemas enfrentados pelos e pelas estudantes, já que o método todo foi feito com elas/eles em sala e para eles/elas pensado, foram motivos bem relevantes.
Outro ponto foi minha insatisfação com o fato de que se exige a produção de boas redações nos exames e vestibulares, mas não se ensina isso. No ENEM, por exemplo, a redação é diferencial para que se consigam boas vagas em universidades e faculdades federais, que deveriam representar oportunidades equânimes para toda a população. Todavia, isso não acontece, em boa parte porque as escolas públicas que formam estudantes para essas provas ou não têm redação ou a ensinam mal, o que parece mesmo uma perversidade.
O que a redação do ENEM traz de diferente com outras redações de vestibulares?
É uma dissertação-argumentativa, parecida com muitas outras de grandes vestibulares, como VUNESP e FUVEST. Todavia, a redação do ENEM tem um caráter diferencial, que é seu cunho social. Os temas apresentados, via de regra, representam problemas enfrentados pela sociedade brasileira. Além disso, há a exigência de que sejam sugeridas propostas de intervenção, na forma de possíveis soluções para o problema abordado, um item que causa sérias dificuldades a quem participa do exame. Dentro desse contexto, é importante apontar que o ENEM tem proposto temas altamente específicos, como "Publicidade Infantil" e "Democratização do acesso ao cinema". Esses temas são prejudiciais e disfuncionais com relação à avaliação que se quer fazer, pois são assuntos muito específicos que exigiriam uma formação também específica, de especialista, para se lidar com eles. Sendo assim, esses temas não se prestam a uma avaliação universalista de uma candidata ou de um candidato que se submete a um exame desta natureza.
Quais são os maiores desafios que os estudantes encontram na hora de escrever uma redação de qualidade?
Muitos, na verdade. Em geral, a formação não é suficiente ou adequada, em especial nas escolas públicas. Isso transparece, muito, em uma falta de familiaridade com a expressão escrita, com suas características particulares, que demandam um raciocínio linear e organizado, que redunda na clareza e na coerência do texto. Notadamente, a leitura faz muita falta, pois não há bons escritores que não sejam bons leitores. Os próprios vestibulares são um problema nesse sentido, porque exigem, de estudantes de ensino médio, adolescentes, a leitura de livros que não parte de seu horizonte cognitivo, muitas vezes dos anos mais tardios do Século 19! O ponto principal do qual estudantes reclamam é organizar as ideias em um texto: há MUITA dificuldade para concatenar frases e parágrafos de maneira coerente e organizada. Isso é falta de um ensino de redação que seja focado na estrutura dos textos. E há outros três pontos de dificuldade: 1) começar o texto, fazendo a introdução; 2) fazer as conclusões e 3) baixo nível de repertório cultural.
Ou seja, cobra-se do estudante uma intervenção social quando, na verdade, o problema que revela tem mais a ver com a capacidade de construir um texto coerente. Enfim, e no que diz respeito ao repertório cultural, como desenvolver e como usá-lo?
Essa é a principal questão. O repertório é, basicamente, a base da inteligência de cada um. E no Brasil, como se sabe, a formação nesse sentido é muito deficiente. Senti muito isso quando, em 2018, trabalhei ministrando uma oficina em uma escola francesa: o repertório dos e das jovens era elaboradíssimo. E não se trata apenas de redação, de leitura e escrita. Um bom repertório é multi-linguagem, multimidiático, hipermidiático, transmídia. Portanto, todas as linguagens devem ser ensinadas nas escolas, com responsabilidade e construindo-se conexões entre seus sentidos e elementos de linguagem, mostrando COMO as linguagens são construídas e como elas criam seus significados. Isso é muito pouco feito e pior: muitas vezes, o cinema e os desenhos animados, por exemplo, são muletas para professores darem “uma aula mais tranquila”, “passar um filminho” e não ter que se esforçar e/ou pensar muito. A formação do repertório multi-linguagem deveria ser um dos eixos centrais da educação, desde os anos iniciais do ensino fundamental, estendendo-se a todos os graus de formação universitária.
Como lidar com questões de natureza ideológica-política na redação do ENEM, você considera isso um problema?
Isso não é um problema exatamente, no sentido de mais algo a se contornar. O ENEM, por seu caráter social, traz questões ideológicas e políticas em seu bojo, mas também é notável que tenha “suavizado” ou desviado um pouco essas questões, valendo-se de um discurso de inclusão que é, na verdade, uma rota alternativa à discussão de temas espinhosos. Sempre digo às/aos estudantes que temas espinhosos e que sejam delicados ao equilíbrio do governo (qualquer que seja ele) não serão pedidos. Portanto, esqueçam a Pandemia como tema 2020. Outra questão que aparece é se expressar opiniões contra o governo ou delicadas pode acarretar notas menores. Pelo que vi até hoje, não há nada que referende isso, mas é preciso levar em conta que o ENEM, sendo um exame de cunho social e até por pedir intervenções, valoriza uma perspectiva humanista e de desenvolvimento social. Portanto, opiniões que se desviem dessa perspectiva tendem a causar desvalorização dos textos.
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