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O termo metafísica desperta a fúria dos cientificistas e o desprezo dos presunçosos. De um modo geral, os cientificistas são rottweilers da objetividade das ciências naturais. Tudo que não pode ser compreendido como objeto das ciências não vale como realidade; tudo que não cabe numa planilha é fantasia. Noutras palavras: crendice. No máximo, sentimentalismo poético.
Cientificistas são naturalistas no sentido de que só há a realidade natural — seja lá o que significa a “natural” e “realidade”. Para o naturalismo ter sucesso, seus sacerdotes precisam encontrar alguns bodes-expiatórios: a metafísica e, claro, os religiosos. Para os filósofos, a metafísica é a área mais importante da filosofia; para os naturalistas, um sonho estúpido. Para os religiosos, fé é autocompreensão; para os naturalistas, fé é autoengano.
Os naturalistas cientificistas procuram determinar o campo de estudo da filosofia nos seguintes termos: o que não é demarcado como digno de científico é metafísica. Se é metafísica, não presta; é religião. Para isso dar certo, o termo “metafísica” precisa ser traduzido assim: “o que está para além da realidade física”. Ou seja: o sobrenatural. Em suma, delírios de um pensamento mágico.
Historicamente, o termo metafísica foi criado por Andrônico de Rodes, um filósofo grego do século 1 a.C. mais conhecido pela façanha de organizar obra de Aristóteles. Ao compilar e catalogar a monumental obra aristotélica, Rodes usou o termo metafísica (tà metà tà physiká) para designar o lugar de um conjunto de escritos que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira. Sim, a princípio, metafísica significa “depois da física”, mas na medida em que serve para catalogar obras na “estante”: os livros que estão dispostos depois dos livros de física. Há uma lógica em catalogar os livros assim.
Para Aristóteles, as ciências particulares tratam de objetos particulares — o que chamaríamos hoje de fatos particulares. No entanto, há uma ciência que trata do objeto em sua universalidade. Esta ciência ele batizou de Filosofia Primeira ou ciência do ser enquanto ser. No caso, “Primeira” porque se diferencia da filosofia da natureza (física, biologia por exemplo) e das ciências práticas (ética e política). Na ordem de importância, é “Primeira” porque trata do mais importante objeto de investigação filosófica, busca os princípios e os fundamentos.
O estudo da metafísica não tem a ver com o que “está além da realidade natural”, dando uma espécie de sentido “sobrenatural” e vago ao objeto da filosofia. Alegar que a metafísica estuda o que está para além da física, e, portanto, não merece ser tratada como ciência, é invencionice.
Na verdade, a Filosofia Primeira é a própria busca da compreensão da realidade como um todo. A disciplina, ou ciência, como diz o próprio Aristóteles no Livro IV da Metafísica, “estuda o ente enquanto ente e aquilo que lhe pertence em si mesmo”. Essa ciência “não é idêntica a nenhuma das ciências que se dizem particulares: pois nenhuma das outras examina universalmente o ente enquanto é ente, mas, tendo recordado uma parte do mesmo, estudam o que decorre a respeito dela”.
Alegar que a metafísica estuda o que está para além da física, e, portanto, não merece ser tratada como ciência, é invencionice
Fazendo um giro da filosofia para a religião, sugiro aos interessados em conhecer a “natureza” do relato bíblico a não pensarem à luz de distinções do tipo “evolução versus criacionismo”. Nesse sentido, a narrativa bíblica do livro do Gêneses não pode ser lida como um relato de “ciências naturais”, mas como uma “fé” na criação. Não no nível dos fatos, mas do nível mais fundamental entre o ser e o nada.
A explicação científica da seleção natural não fala em “criação”. Antes, explica a origem e diferenciação das espécies no sentido biológico, de uma relação entre fatos. É ciência num sentido particular de responder por que as espécies se diferenciam; não sobre o sentido metafísico da origem e do fim último de todas as coisas. A propósito, a teoria da seleção natural concorre com a concepção biológica de Aristóteles, jamais pode concorrer com sua metafísica.
Portanto, o relato bíblico pode ser lido em dois sentidos não dicotômicos: um sentido pragmático, isto é, de uma ação no tempo histórico realizada por um povo — como os hebreus se autocompreenderam na história. E um sentido teológico: como a experiência dessa autocompreensão é narrada como experiência da ação de Deus no mundo. O que marca duas noções fundamentais para toda leitura dos textos bíblicos: Aliança e Salvação. Ou seja: as Escrituras relatam a criação do mundo e a história de um povo. Tratam, assim, do nosso destino.