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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Sociologia

Reflexões sobre o fanatismo e uma observação sobre a fé cristã

(Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo)

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1. O espírito de porco do dogmatismo fanático denota uma espécie de perversão do ato de conhecimento. Procura-se, muitas vezes e de forma injusta, associar – e restringir ao limite – um pernicioso estado de consciência humana à vida religiosa. De fato, o sentimentalismo religioso pode conduzir um homem a graus cada vez mais profundos de distanciamento da realidade, mas a experiência religiosa fanática não faz a um homem nada além de potencializar suas velhas inclinações e tormentos psíquicos.

E realmente é sedutor autodeclarar-se distante e até isento desse tipo de distúrbio. Todos corremos o risco não da ignorância, mas do excesso convulsivo de certezas. Ou seja: fanatismo é uma doença das certezas.

O ponto que precisamos levar em consideração é o seguinte: o dogmático não é exclusividade da vida religiosa. Facilmente encontramos gente assim na ciência e na política. O que nos leva à seguinte conclusão: a consciência fanática constitui-se pela distorção de formas genuínas de conhecimento. Não é o fato de alguém estar fazendo “ciência” em uma grande universidade do mundo que o fará melhor que pobres senhorinhas ingênuas cultuando histericamente algum líder charlatão de uma igreja de fundo de boteco.

O dogmático não é exclusividade da vida religiosa. Facilmente encontramos gente assim na ciência e na política

Você pode ser um cientista tão vigarista quanto um religioso, ou um religioso tão vigarista quanto um cientista. Assim como você pode ser um fanático político, por exemplo. A consciência dogmática talvez seja uma das incapacidades mais difundidas entre a vida humana, já que não escolhe cor, condição social, condição econômica, religião, inclinação sexual, opção política e grau de formação intelectual.

2. A tese de que o capitalismo e o progresso científico esvaziam igrejas pode ser atraente para aqueles espíritos livres, liberais progressistas e gente inclinada ao humanismo ateu. Penso que, para ficar ainda mais precisa, essa tese deveria ser reformulada nos seguintes termos: o capitalismo tornou o compromisso religioso obsoleto. Quanto mais ricas e inteligentes, mais as pessoas encontram outras coisas para fazer e para se preocupar.

Pelo menos essa é a conclusão do sociólogo Jochen Hirschle, que encontrou uma relação entre progresso econômico e igreja vazia. Será? Não creio. O capitalismo, enquanto sistema econômico, não me parece suficiente para explicar o desinteresse das pessoas em relação aos seus compromissos religiosos. A secularização é um processo histórico ocidental muito mais complicado que a ascensão da riqueza e a decadência da fé.

Há, a meu ver, outros fatores de fundo que antecedem o capitalismo nessa perda de interesse e compromisso das pessoas pelas religiões organizadas, sobretudo com relação ao cristianismo. Neste particular, penso que as observações de Walter Benjamin sobre o capitalismo podem ajudar. Segundo ele, o capitalismo se apresenta como religião, uma expressão para além da economia. Diz o filósofo alemão em seu famoso texto de 1921: “o capitalismo serve essencialmente à satisfação das mesmas preocupações, tormentos e inquietudes aos quais outrora davam resposta as chamadas religiões”.

Benjamin distinguiu três traços da estrutura religiosa do capitalismo: primeiro, o capitalismo como religião puramente cultual. Sem dogma e sem teologia, mas aberto ao utilitarismo. Segundo, como celebração do culto permanente: “Não há nele nenhum ‘dia de semana’, nenhum dia que não seja de festa no sentido terrível do desdobramento de toda pompa sagrada, da tensão extrema do adorador” (característica que explicaria bem as “igrejas vazias”); e, por último, o traço mais assombroso e, como diz Benjamin, monstruoso: o capitalismo é um culto não expiatório, mas culpabilizador: “Uma consciência de culpa monstruosa, que não se sabe expiada, agarra-se ao culto, não para expiar nele esta culpa, mas sim para fazê-la universal”.

Muitos dos meus amigos protestantes me inspiram, verdade seja dita. Inspiram-me na firmeza da fé cristã, na coragem em resgatar a tradição cristã, no saber dar o testemunho de devoção, fé e amor a Cristo, Nosso Senhor

Nesse sentido, o culto ao dinheiro e ao progresso se tornam religiões substitutas. Na verdade, as pessoas se desinteressam pela mensagem cristã para cultuarem a si mesmas.

3. Enfim, hoje é um dia histórico para o Ocidente cristão. Fiéis protestantes comemoram a Reforma. Eu poderia arrumar um número imenso de razões para não prestar qualquer tipo de homenagem aos meus amigos, fiéis em Cristo. Mas meu coração e amizade dizem o contrário; meu coração em Cristo força-me a dizer outra coisa. Muitos dos meus amigos protestantes me inspiram, verdade seja dita. Inspiram-me na firmeza da fé cristã, na coragem em resgatar a tradição cristã, no saber dar o testemunho de devoção, fé e amor a Cristo, Nosso Senhor.

Somos, nós cristãos – católicos, reformados, ortodoxos etc. –, uma só cultura. E, como sabemos, os dias são nebulosos. De raivosa hostilidade à fé cristã. Não serei eu mais um agente dessa hostilidade, dessa triste desagregação, dessa hipócrita e farisaica divisão. Sempre sentei à mesa com meus amigos batistas, calvinistas e luteranos. Hoje, exclusivamente hoje, não farei o contrário. Devo saudá-los. E espero continuar juntos pelo Evangelho, pela Verdade e pela Igreja de Cristo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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