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O autoritarismo nunca será necessário enquanto instituições republicanas forem cultivadas. Mesmo as decisões mais difíceis no combate à pandemia precisam ser decisões republicanas e não autoritárias. Para isso, valores republicanos são necessários; leis justas são necessárias; liberdade é necessária. Quem defende a necessidade do autoritarismo para fazer valer uma agenda de políticas públicas em nome do bem maior coletivo não sabe o que escreve. Autoritários devem ser ridicularizados.
Você pode usar “autoritarismo necessário” para adestrar animais não humanos. Biólogos são bons em compreender a vida das plantas, dos insetos e dos animais irracionais. Agora, no que diz respeito à forma como as pessoas organizam a vida social, a abordagem biológica, usada para compreender a vida das plantas e dos insetos, não serve para dizer o que é justo. Trata-se de uma questão de humildade reconhecer os limites da compreensão científica. Burrice e autoritarismo bebem da mesma fonte.
Quando um cientista vai para o debate público dizer como as pessoas devem se comportar numa pandemia, ele fala como cientista ou como cidadão? Qual a natureza de sua autoridade – científica ou política? Como um cidadão comum, não cientista, deve receber a sugestão do cientista? Que tipo de consciência os cidadãos devem desenvolver para saber de suas responsabilidades nessa pandemia? Enfim, não se trata exclusivamente de uma orientação médica, mas humanitária. De senso de responsabilidade humana. Certas atitudes podem contaminar e matar outras pessoas. A exigência aqui é fundamentalmente ética.
Você pode usar “autoritarismo necessário” para adestrar animais não humanos. A abordagem biológica, usada para compreender a vida das plantas e dos insetos, não serve para dizer o que é justo
Um médico, ao fazer o diagnóstico e apresentar o tratamento de uma doença, não obriga o paciente a se comportar de determinada maneira. Ele, consciente dos seus limites civis, sugere que determinado comportamento será melhor para o paciente. O paciente, ciente de sua condição e dos riscos envolvidos, aceita ou não a sugestão do médico.
Se o paciente estiver em posse de suas capacidades cognitivas e deliberativas, é ele quem deve decidir pelo tratamento; não o médico. O médico oferece razões, persuade, convence, mas não decide, não manda o paciente calar a boca. A palavra final sobre o tratamento sempre será do paciente, que autocompreende o que é melhor para sua vida. É uma questão de valor moral, não de fato científico. Quem domina o fato científico diz: “isto é melhor por isso e por isso”; nunca deve dizer “cale a boca, seu estúpido, só eu e meus pares cientistas somos capazes de determinar o que é melhor pra você!”
A não ser que o paciente não esteja mais em condições cognitivas e deliberativas para julgar o que é melhor para si mesmo; aí pode existir certo espaço para decisões de terceiros. Mas quem julga qual o melhor tratamento, nesse caso, ainda não é o médico, mas a família do paciente. O médico ajuda, persuade, convence, ou seja, oferece boas razões. A sua linguagem técnica tem a vantagem de compreender a natureza da doença e da cura. Não a natureza da liberdade, do poder de decidir pelos outros.
Entre um médico e um curandeiro, quem oferece as melhores respostas para o diagnóstico e o tratamento de uma doença? Eu acredito que a medicina e a ciência são capazes de oferecer melhores razões. Eu jamais buscaria ouvir a opinião de um curandeiro para o diagnóstico e tratamento de qualquer doença. Também estou convencido de que uma sociedade que valoriza médicos e cientistas será melhor que uma sociedade que valoriza curandeiros. Se uma criança está doente, a família deve levá-la ao médico; nunca a curandeiros.
Porém, do ponto de vista estritamente político, lamento dizer, um curandeiro é tão cidadão quanto um médico. Não acho que um médico tem o poder de impedir que um curandeiro fale no espaço público. O conselho de medicina pode impedi-lo que fale na qualidade de médico, mas não na de curandeiro. O médico pode e até deve ridicularizá-lo, mas não silenciar e impedir o curandeiro de se manifestar politicamente. Calar vozes é coisa de tirano, que pode ser médico, curandeiro ou qualquer idiota.
Em repúblicas democráticas, quem julga o justo não é nem o médico, nem o curandeiro e nem o cientista, mas o cidadão. Cidadãos deliberam o que é melhor para a saúde do corpo social. No caso de uma pandemia, deveríamos ouvir o diagnóstico e a proposta dos cientistas e dos médicos, não de charlatões curandeiros.
Quando um cientista vai para o debate público dizer como as pessoas devem se comportar numa pandemia, ele fala como cientista ou como cidadão? Qual a natureza de sua autoridade – científica ou política?
Mas o médico e o cientista devem ser capazes do trabalho da persuasão racional, do amplo debate de ideias e da coragem do esclarecimento. Só assim se combate crenças falsas, só assim se combate charlatões.
Você não precisa calar a boca de ninguém, restringir a liberdade de expressão de ninguém ou fazer a “escolha consciente de barrar algumas ideias do debate público” para realizar o bem comum e instituir leis democraticamente. Você usa do debate para ridicularizar o mentiroso, desmoralizar o charlatão. Exceto em tiranias, não se usa o poder para persegui-los e calá-los.
O grande tema da mentalidade republicana consiste em combater toda e qualquer forma de arbitrariedade do poder. E não importa se a verdade emana de sacerdotes, cientistas, filósofos ou curandeiros. Na república democrática, por mais difícil que seja definir os termos, o poder emana das pessoas, independentemente do status social que elas ocupam. Pobre, rico, inteligente ou burro, médico, cientista, biólogo ou curandeiro, não importa, ninguém pode dizer a outra pessoa “cale a boca, burro, me obedeça!” sem fazer papel de ridículo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos