Há diferenças básicas entre descrever e prescrever, compreender e justificar, julgar e agir. Além disso, não é fácil arriscar opiniões, analisar e julgar os fatos, julgar os outros e a si mesmo, argumentar, se dispor a defender que a determinada crença é melhor do que outra, agir inspirado nessas crenças, construir hábitos considerados justos e bons e ainda tomar consciência de que a realidade será sempre maior e mais complexa do que a nossa capacidade humana de entendimento. Enfim, nada disso é simples e quem se dispõe a investigar o fenômeno político precisa saber flertar com as incertezas inerentes à vida dos seres humanos em sociedade. Antes de fazer previsões, buscar dar sentido ao que parece caótico e sem sentido.
Por temperamento pessoal, tento me convencer do seguinte: a mais nobre tarefa da atividade filosófica é reconhecer que nada disso pode ser simplificado, e que por mais tentadora que seja, a simplificação de todo fenômeno político não passa de hábito irrefletido, de um perigoso impulso involuntário de medir o mundo a partir do próprio intelecto e experiência, e ser a medida do mundo. Para ser mais preciso e honesto comigo mesmo: a disposição cética cultivada por certas filosofias me ajuda a desenvolver a consciência de que tudo o que eu acredito, com convicção intelectual e apego emocional, pode estar simplesmente errado. Continuo socrático neste particular: é preferível sofrer do que ser o agente de uma injustiça. E por causa desse drama moral, uma vida não examinada não é digna de ser vivida
A possibilidade do erro é uma ideia poderosa para o refinamento do espírito filosófico. Treinar a habilidade mental de investigar as próprias ideias, aceitar os riscos, jamais desconsiderar a presença do acaso e mesmo assim saber dar razões de que isso é a coisa certa a fazer é fascinante, pois exprime com ironia a tensão no interior da existência. Porque se trata do seguinte: o que faz o filósofo senão justificar até as últimas consequências que o seu entendimento acerca do mundo é o verdadeiro, enquanto todos os outros são falsos? Ao aplicar o bom ceticismo para o entendimento das relações políticas, não devemos perguntar (por obrigação de ofício): por que devemos optar por organizar o mundo desse jeito e não daquele outro? Há tantas formas de organizar nossa vida em sociedade, por que república e não monarquia? Por que democracia e não aristocracia? Por que liberalismo e não conservadorismo?
Tenho comigo que a tarefa primordial da atividade filosófica é e sempre será a de buscar o parâmetro para uma maneira correta de viver sem negligenciar a experiência direta de se estar o tempo todo diante do desconhecido, de que as coisas boas e justas são difíceis. A vida do pensamento não pode estar divorciada da experiência do mundo da vida e vice-versa. Trata-se, portanto, de considerar que se está vivendo no interior de uma tensão existencial entre certeza, pretendida pela razão, e incerteza, o fato mais bruto do mundo.
O pensamento filosófico não é apenas uma atividade descritiva da realidade. Não acredito que exista algo genérico que se possa chamar de “a Filosofia”. Penso que faz mais sentido olhar para os filósofos em busca de razões e justificativas de seus sistemas de crenças — e não há um sistema que até hoje se apresentou definitivo e último, como a palavra final de tudo o que está aí diante de nós. Mesmo os casos emblemáticos de filósofos que tentaram falar sub specie aeternitatis, como se falassem à luz da eternidade e não da própria e miserável condição humana, a arrogância foi fatal e enlouquecedora. Se a eternidade é desejável, deve ser segundo a arte do silêncio e da reverência. Um impulso, um fim.
Filosofia não é “ciência” no sentido moderno do termo. Portanto não pretende garantir que o âmbito da verdade fique restrito à descrição dos fatos mediante método de verificação empírica sem interferência da subjetividade, dos valores e das emoções pessoais. A ciência moderna — mesmo a ciência política — partiu de uma cisão radical e intransponível entre fato e valor. Mesmo o grande Max Weber considerou o âmbito dos valores como decisões injustificáveis, não se trata, pois, da vocação da ciência.
Diferente dos cientistas, filósofos políticos buscaram defender uma forma de vida social. A filosofia política é prescritiva, pois não só descreve como o fenômeno político funciona, mas defende qual é a melhor forma de governo. Filósofos tendem a reconhecer que as nossas comunidades políticas, nossas práticas institucionais, nossas escolhas sobre aquilo que é justo ou injusto se manifestam com uma variedade de formas incompatíveis. Trata-se de uma constatação básica ver que pessoas se diferenciam umas das outras, dão razões profundamente distintas para o que escolhem e fazem. A grande maioria dos filósofos políticos formulou perguntas e buscou dar justificação discursiva para a melhor forma de organizar a vida em sociedade.
O início da discussão entre o filósofo e o político é Platão. Toda obra platônica é uma tentativa de distinguir o amante da sabedoria do amante da opinião; o filósofo do sofista. Para ele, nesse sentido tentador, o filósofo seria ironicamente o político, que reinará acima de tudo em sua cidade interior; enquanto que o sofista subverte a justiça e mede o mundo a partir de suas pretensões. O autor do primeiro tratado de filosofia política que se tem notícia, A República, é enfático em atribuir aos sofistas o trabalho de produtores de representações fictícias ou imagens ilusórias. Sofistas são produtores de aparência, simplificadores do mundo.
O que seria uma posição política-ideológica senão a atitude produtora de fantasias já denunciada por Platão desde à trágica morte de Sócrates em um regime democrático elevado às suas últimas consequências? Ideologias sempre produzem, no final das contas, a morte do homem justo. A tese socrática defendida por Platão segundo a qual seria melhor sofrer uma injustiça do que praticá-la deveria servir sempre de alerta para todo aquele com intenções de se envolver com os assuntos da cidade. Como disse no início, sigo socrático e prefiro saber flertar com as incertezas.