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Uma das perguntas mais instigantes e persistentes de toda história da filosofia é “o que é homem?”. Kant, filósofo alemão que dispensa apresentações, chegou a eleger essa pergunta como aquela que resume todas as outras grandes perguntas filosóficas. Não há filosofia se não presumirmos uma resposta acerca do que nós somos. E o que é homem?
As reflexões filosóficas sobre o que é o homem enchem bibliotecas. Particularmente interesso-me por filosofias que têm como ponto de partida a experiência de finitude sem que a própria constatação de finitude satisfaça a pergunta pelo homem. Em resumo, significa o seguinte, para lembrar de Hércules, numa peça de Eurípides: “quando se é mortal, é preciso pensar como mortal”. Ora, só que pensar como mortal é ser capaz de entender que somos seres insuficientes para nós mesmos.
A sabedoria popular – e aqui lembro-me do meu falecido pai e do meu pedreiro de confiança – reza que “na vida tudo tem solução exceto a morte”. De fato, ao dizer isso, num primeiro momento, o horizonte em questão não é a morte, mas como tocar a vida. Sobretudo diante de pessoas que colocam barreiras em tudo.
Podemos solucionar tudo o que está ao nosso alcance. Tudo. Só que, diante da morte, tudo o que pode ser solucionado derrete
Na verdade, para ser preciso, portanto, trata-se de um modo de como encarar os obstáculos cotidianos da vida sem aquele otimismo bocó que busca ver o lado bom do sofrimento. Não há lado bom na dor. Por isso, nesse sentido, dizer que há solução para tudo exceto para a morte traz uma orientação prática. Pensar como mortal é, também, saber agir como mortal.
Se fôssemos inconscientes da nossa finitude, pensaríamos e agiríamos como animais inconscientes. Presas fáceis do instante, não teríamos consciência da fronteira que nos separa dos animais não humanos. Por sua vez, se fôssemos como os deuses, a história seria outra. Pois pensaríamos e agiríamos como imortais. A morte não seria um problema. Resumindo: nos encontramos no meio termo entre animais e deuses – para lembrar do Aristóteles.
Não faço ideia do que seja pensar e agir como imortal, embora às vezes pense na imortalidade como uma solução redentora. Sem o horizonte da imortalidade, restaria o desejo de não ser meramente um animal irracional. Como se a consciência da nossa finitude acrescentasse algum grau de dignidade simplesmente em virtude de saber que um dia morreremos.
No dito popular de que “na vida tudo tem solução exceto a morte” há o reconhecimento de que a morte não pode ser solucionada. Podemos solucionar tudo o que está ao nosso alcance. Tudo. Só que, diante da morte, tudo o que pode ser solucionado derrete. Logo, o problema da morte não se dissolve só porque somos capazes de apontar para o fato de que um dia morreremos.
Saber disso simplesmente não acrescenta dignidade. A morte continuaria nos privando de tudo. Inclusive da própria dignidade. Em outras palavras, não há dignidade em saber que se é mortal. Esse é o ponto de partida. Dignidade está naquilo a que aspiramos. A dignidade humana vem do fato de podermos aspirar a alguma coisa além da nossa própria condição. Ou seja, ultrapassarmos a nós mesmos. O termo técnico seria “transcender”: o ser humano é aquele que transcende a si mesmo.
Em seu livro O que é o homem?, Ernst Cassirer escreve: “declara-se que o homem é a criatura que está em constante busca de si mesmo – uma criatura que, em todos os momentos de sua existência, deve examinar e escrutinar as condições de sua existência”. Não é isso a capacidade de se ultrapassar? Cassirer responde: “nessa atitude crítica para com a vida humana consiste o real valor da vida humana”.
A dignidade humana vem do fato de podermos aspirar a alguma coisa além da nossa própria condição
Mais do que passar o dia contabilizando mortos, gostaria de trazer as reflexões de Cassirer porque ele retoma um valor que está no coração da filosofia desde seu nascimento entre os gregos. “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”, diz Sócrates na Apologia escrita pelo fiel discípulo Platão. Cassirer, e eu encerro com essa passagem, parte dessa definição socrática a respeito do valor da vida para definir o que é o homem:
“Podemos epitomizar o pensamento socrático dizendo que o homem é definido por ele como o ser que, quando lhe fazem uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. O seu conhecimento e sua moralidade estão compreendidos nesse círculo. É por essa faculdade fundamental, por essa faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos outros, que o homem se torna um ser ‘responsável’, um sujeito moral”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos