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O Ministério Público, esse braço do Estado que aparece sempre que convém, resolveu exercer seu papel mais nobre: ser o tutor da fé alheia. Depois da pressão dos ofendidos, elegeu Claudia Leitte como alvo de sua mais nova cruzada. Quanta eficiência! O crime da cantora foi bárbaro: mudou a letra de uma música. A ofensa ganhou status de sacrilégio: trocou uma saudação a Iemanjá por uma a Yeshua. Ou seja, Claudia Leitte afirmou sua fé em Jesus. Os ofendidos alegaram “preconceito religioso”. Aceitaram a denúncia.
Em tempos normais, a escolha artística e religiosa de Claudia Leitte seria chamada de liberdade de expressão. Mas, como vivemos no Brasil de 2024, é claro que virou caso de justiça.
Precisamos analisar alguns detalhes paradoxais do que aconteceu. O Estado, que se diz laico, não deveria se meter nisso. Mas, como vivemos no Brasil de 2024 — o Brasil do amor e da democracia —, o Estado laico meteu-se na fé alheia. Na fé cristã, diga-se de passagem. Se tivesse trocado “Yeshua” por “Iemanjá”, seria considerada a máxima expressão de cultura brasileira. “Mulher empoderada”. Noutros termos: fosse o contrário, a Justiça brasileira estaria em silêncio reverente. Subserviente.
Como cristão, ainda que eu pudesse me incomodar — ou me sentir ofendido —, não caberia ao Ministério Público meter-se na questão. Minha fé não precisa de tutela estatal. O Estado pode legislar sobre crimes, regular contratos, tributar cidadãos, mas não tem competência para arbitrar ofensas espirituais. Minha fé não está nas mãos de burocratas ou juízes, e sim no Reino de Deus.
Em tempos normais, a escolha artística e religiosa de Claudia Leitte seria chamada de liberdade de expressão
Cristo foi pregado na cruz feito um trapo. Nada mais ofensivo. Escárnio público, cusparadas, zombaria. Cruz. E mesmo diante do maior ultraje da história, não houve recurso jurídico. Nenhuma comissão de direitos religiosos interveio. Nenhum apóstolo entrou com petição. O cristianismo nasce da rejeição e cresce na adversidade. Imaginem os primeiros cristãos recorrendo aos burocratas do Império Romano porque se sentiram ofendidos. Quem segue Cristo sabe que sua fé não precisa de proteção oficial.
A fé cristã não se sustenta no reconhecimento de burocratas do Estado, na aprovação das elites ou na aceitação social. Os cristãos foram perseguidos por impérios, destruídos por regimes comunistas, executados em revoluções. Não será um verso de música, uma piada de programa humorístico ou um despacho do Ministério Público que abalará a fé em Jesus.
Hoje, laicidade — para essas mentes iluminadas — significa excluir o cristianismo do debate e da experiência pública. Um Estado laico que, no fundo, se comporta como um inquisidor secular.
O conceito de laicidade, tal como concebido em nossa tradição histórica, é um produto da cristandade. Sei que torcem o nariz quando afirmo isso. Então, desenho: sim, foi o cristianismo que separou fé e poder político. Cristo libertou os súditos da adoração compulsória ao imperador. O que nos trouxe até aqui foi justamente essa distinção: “O Reino de Deus não é deste mundo”.
É curioso observar a sanha persecutória com que se trata alguém que resolveu expressar sua fé cristã publicamente. Liberdade religiosa tornou-se um conceito seletivo. Serve apenas para algumas manifestações, jamais para o cristão. Resumindo: se um artista menciona orixás em uma música, é cultura. Se menciona Jesus, é fundamentalismo. Que mencione orixás e Cristo. Só não recorram ao Estado para tutelá-los. Porque isso não é liberdade, é servidão.
Hoje, laicidade — para essas mentes iluminadas — significa excluir o cristianismo do debate e da experiência pública
Compartilho um detalhe histórico: os inquisidores católicos investigavam cristãos acusados de heresia. Por isso, instauraram um tribunal. Não para proteger cristãos de falsa acusação e da perseguição da turba — mas para julgá-los. Não era um sistema penal sensível, de fato. Entretanto, estabeleceram um limite contra os canceladores. Nesse sentido, historicamente, a Inquisição foi um avanço no sistema penal.
Se a pessoa não fosse cristã, o Santo Ofício não se metia. Inquisidores investigavam cristãos. Havia uma lógica interna, ainda que questionável, e um critério definido. Mais um detalhe: não se tratava de um tribunal secular. Hoje, isso não importa: qualquer cidadão que não reza pela cartilha multiculturalista deve ser perseguido como herege. Não se trata só de um problema da ordem sagrada. Mas de um crime secular, punido por um tribunal secular. Prestou culto a um deus que o Estado não aprova: crime. E não adianta pedir desculpas.
Na Inquisição, a Igreja julgava os seus dentro de uma estrutura reconhecida. Agora, o Estado julga todos sem uma regra clara: ofensa, preconceito. No tribunal dos ofendidos, a acusação é subjetiva, a culpa presumida e a punição inevitável. O veredicto não vem após um processo rigoroso — vem da conveniência política. No passado, um inquisidor precisava de indício. Hoje, basta uma manchete e a turba de canceladores.
Gostaria de registrar: não estou elogiando a Inquisição medieval. Só queria lembrar que o que vivemos hoje pode ser ainda pior.
A perseguição a Claudia Leitte revela isso: vivemos em um tempo em que o espaço para discordância está domesticado. Não importa que a artista tenha feito uma escolha pessoal. O pecado não está na intenção do pecador, está na percepção do outro. Quem determina meu pecado e meu crime é o outro. Se alguém (exceto cristãos), em algum lugar, se sentiu incomodado, então a Justiça precisa intervir. Insisto: se fosse o contrário, Claudia Leitte seria chamada de musa.
No fim, ela talvez tenha prestado um serviço involuntário ao debate. Expôs o duplo padrão moral dos novos inquisidores.
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