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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Quando a besta escapa

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Centro de Educação Infantil Aquarela, em Saudades (SC), onde um jovem matou três crianças e duas professoras. (Foto: Prefeitura de Saudades (SC))

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Gostaria de falar brevemente sobre um dos meus livros prediletos: O senhor das moscas. Não esperem uma resenha, trata-se tão somente de uma brevíssima reflexão sobre a barbárie interior do ser humano. Publicado em 1954, e ganhador do Nobel em 1983, esta obra-prima escrita por William Golding nos ensina uma lição importante não só sobre crianças perdidas em uma ilha isolada no Oceano Pacífico como levanta sérias dúvidas sobre a própria natureza humana: não há bondade natural.

No livro, a Besta, uma cabeça de porco que passa a ser objeto de culto pelas crianças ali perdidas, não pode ser morta, nem por crianças nem por adultos. Por que a Besta não pode ser combatida pelas crianças? Ora, porque não pode ser morta por ninguém. A princípio poderia parecer um mecanismo cultural de sobrevivência. Porém, a Besta é o próprio Senhor das Moscas, pois se refere à barbárie e ao caos que habita o coração de cada ser humano.

Uma cabeça de porco se transforma no totem que sustenta a nova tribo de adolescentes e crianças: o mito fundador daquela pequena comunidade é a Besta, é a morte, é a violência. Não seria precisamente a violência o mito fundador da necessidade de cultura?

Apostar na bondade natural do ser humano significa encontrar nada além de equívocos, tristeza e desilusão

Filosoficamente falando, o livro de Golding combate um dos maiores mitos fundadores criados pelo homem moderno: o da bondade natural dos seres humanos. No idílico estado de natureza – a grande abstração dos filósofos –, os seres humanos eram bons...

O fato é que todo esforço civilizatório contra a barbárie não passa de uma frágil e superficial camada que cobre – na tentativa de barrar e controlar – a grande besta que habita dentro de todos nós. A civilização é a obra frágil. Como descreveu Golding: não existe saída natural para conter o fato de que o ser humano é o problema para si mesmo. A Besta – ou, se preferir, a barbárie – só deseja uma coisa: escapar.

Por isso não adianta apelar para a dramatização moralista e politicamente correta de que há genuína luta para um mundo melhor e mais justo, e que cabe a jovens engajados a realização do reino de liberdade e justiça. Apostar na bondade natural do ser humano significa encontrar nada além de equívocos, tristeza e desilusão. “Você sabe, não é?”, perguntou o Senhor das Moscas, “que sou parte de você, não sabe? Que estou perto, perto, perto! Que eu sou a razão pela qual não há saída? A razão pela qual as coisas são o que são?”

Desculpa o pessimismo, meus caros leitores. Mas, depois da notícia do rapaz que entrou com facão numa creche e matou três crianças e duas professoras, eu não consigo pensar em mais nada além do Senhor das Moscas: a Besta.

A respeito do otimismo romântico, lembrei de uma passagem de Nietzsche contra a imaginação idílica de Rousseau, que deve servir contra toda e qualquer imaginação fantasiosa a respeito da bondade natural do homem.

Contra o genebrino, diz o filósofo alemão: “Homens como Rousseau sabem utilizar suas fraquezas, lacunas e vícios como adubo para seu talento, por assim dizer. Quando ele lamenta a corrupção e degeneração da sociedade como triste consequência da cultura, isso tem por base a experiência pessoal; a amargura desta proporciona agudeza à sua condenação geral e envenena as flechas que ele dispara; ele se desoprime inicialmente como indivíduo e pensa em buscar um remédio que seja útil diretamente à sociedade, mas também indiretamente, por meio dela, a ele próprio”.

Quem não precisaria de um remédio para os seus próprios tormentos?

O filósofo britânico John Gray, em Cachorro de Palha, tem uma expressão excelente que resume bem o lugar do homem na natureza ou a natureza no homem: “o genocídio é tão humano quanto a arte ou a prece”. E a sua fórmula lapidar para definir o ímpeto humano não poderia ser mais realista: “os homens são animais fazedores de armas e com uma insaciável inclinação para matar”.

Não quero compreender o caso de Saudades, buscar motivos psíquicos plausíveis, uma intenção lá no fundo da consciência perturbada desse rapaz que, ao terminar sua “obra”, tentou suicídio. Um caso como esse não pode ser explicado por nada, compreendido por ninguém, pois ele é a própria expressão do nada no mundo. Quer saber se o inferno existe? É só imaginar esse rapaz um dia tomando consciência de que ele deixou a Besta escapar. Sua consciência seria o seu próprio inferno.

Que Deus tenha misericórdia de sua alma e acolha as vítimas em Sua Glória.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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